quinta-feira, 1 de setembro de 2016

De novo vou falar da História de Cambeses, da sua qualidade de vida no que respeita à sua cultura secular, e a esse respeito, aflorar de novo o tema que se prende com as Solenidades Quaresmais que aqui têm lugar, em cada ano, pontualmente. Solenidades estas, tão em uso em terras de Barcelos, embora me pareça que nenhuma dessas localidades possuirá, para a Procissão dos Passos, um percurso de Via Sacra, idêntico ao de Cambeses. Percurso místico porque destinado à dramaturgia da Paixão e também porque o escadório significará subida para o Céu, penitência.

De facto, bem penosa é a subida desse escadório, não só para as crianças vestidas de anjinho e para os homens que têm de equilibrar aos ombros o pesado andor do Senhor dos Passos, mas também para os que têm de segurar com firmeza e dignidade, em dias de ventania, as bandeiras e, sobretudo, o alto estandarte com os símbolos do martírio do Senhor. Toda uma iconografia que os romeiros, em cada ano, admiram, como se pela primeira vez o fizessem. Multidão intensa que aqui acorre quase ao começo da tarde, para ouvir não só o sermão mas também o cântico magoado que a Verónica entoa e os sons, solenemente acompanhados, da banda de música que fecha o cortejo, nesta evocação vivencial dos passos da paixão.

Em que ano teria tido lugar a primeira Procissão dos Passos? Não me foi possível sabê-lo ainda com exactidão. Sei que, e segundo o Prof. Doutor. C. A. Ferreira de Almeida, a primeira procissão quaresmal do Senhor dos Passos terá sido a da Graça, em Lisboa, em 1587. Em Braga, foi instituída pouco depois e, a partir daí, deu-se a sua expansão por terras do norte. Perante esta opinião talvez seja de admitir que a procissão do Senhor dos Passos em Cambeses é anterior à construção do escadório e talvez tão antiga como a capela que, do alto do monte sacro, ostenta a data de 1678.

Muitas outras terras terão criado e depois deixado extinguir a Confraria do Senhor dos Passos e, consequentemente, terão deixado de efectuar toda essa dramaturgia intensamente vivida, que é a Procissão dos Passos. Outras vão-na mantendo com algumas interrupções pelo meio. Cambeses, porém, tem-na mantido inalteravelmente e, com ela, o rigor quanto à data e cumprimento de todo o cerimonial. Todos os irmãos da confraria assumem integralmente os cargos que lhes são atribuídos, sobretudo aqueles que, durante um ano, se movimentaram nos bastidores, para que se cumpra toda essa dramaturgia, que se desenrola ao longo de duas ou três horas, mas que levou meses, um ano, a preparar, com inteiro sentido das responsabilidades e devotamento total e onde tudo foi prevenido até ao pormenor: desde os contactos com o Padre Pregador até à escolha da Verónica, ao contrato com a Banda de Música e à ornamentação da igreja e capelas.

Andores, pálio, bandeiras, anjinhos, sob o som plangente da música e do dobrar cadenciado do sino grande da igreja matriz, tudo se movimenta acertadamente ao longo do difícil percurso que é a subida do secular escadório e, consequentemente, descida pelos arruamentos ziguezagueantes da encosta.


E por tudo isso não posso deixar de me congratular pela efectivação ininterrupta desta solenidade que vive da tenacidade do povo sem necessitar de apoios oficiais, nem de mecenatos para continuar viva e firme do respeito pelas leis ancestrais, pela sua História e pela sua religiosidade.

E quando um povo, por si só, assim decide proceder, está de parabéns. E Barcelos, a quem este povo pertence, estará, sem dúvida, igualmente de parabéns.

Crónica publicada no jornal de Barcelos de 9-4-92

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