quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Numa destas tardes domingueiras, aqui em Cambeses, ao folhear distraidamente uma dessas revistas que falam da moda feminina, vieram-me à ideia as mulheres de Goa e os belos saris que quase todas usavam.

Vi-as de sari a trabalhar no campo, mancha colorida nas extensas planícies de terra seca, amarelada. Vi-as nos vales, entre montanhas, nos pequenos campos de arroz, a ceifar manualmente a segunda colheita do ano. Vi-as carregar cestos à cabeça, vi-as na berma das estradas por onde circulávamos frequentemente. Vi-as pelas feiras ou pelas praias, tentando vender bugigangas aos turistas ocidentais.

Vi-as em Pangim, nas scooters como penduras, sentadas de lado, as sedas garridas esvoaçantes como asas coloridas de borboletas. E vi-as conduzindo elas próprias a scooter, como se em vez de sedas usassem jeans. E vi-as nas receções oficiais, usando-o com uma distinção e elegância que só elas o poderão conseguir.

Curiosamente uma das primeiras mulheres goesas com quem tive oportunidade de conversar no dia da inauguração do Consulado de Portugal em Goa, era uma senhora de sari verde, de cabelos já grisalhos, que falava correctamente o português, e cujo nome era, como o de tantos outros, português também. Além de médica, era presidente do instituto Indo-Português onde, sem qualquer apoio governamental, contra ventos e marés, ensinavam como podiam a língua portuguesa e estavam a preparar um curso de culinária portuguesa, tendo-me confidenciado haver muitos jovens que desejavam aprender o português para estabelecer contactos, não só com Portugal, mas com todo o mundo lusófono.

Mulher igualmente muito interessante, culta e simples, foi uma outra que dias depois conheci num jantar, numa outra localidade goesa. Médica também, e professora universitária, disse só usar o sari em ocasiões especiais como aquela, porque no uso da sua profissão, o sari não lhe deixava os movimentos livres, como é de calcular.

São modelos de vestuário feminino que, à parte um ou outro pequeno pormenor, não se alteram de uma geração para outra e são fáceis de confeccionar, segundo julgo.

Mas o maior conjunto de saris que me foi dado observar teve lugar num casamento hindu, no famoso templo Shiri Mangesh, ao lado dessa belíssima torre branca, conhecida por “Torre da luz”, o qual teve lugar, não na sala onde se guardam os símbolos sagrados da religião hindu, e onde os fieis se recolhem em oração, mas numa outra ala desse conjunto de edifícios, num amplo salão repleto de amigos, vizinhos e familiares dos noivos.

De toda essa assembleia, constituída por gente de idade vária, incluindo crianças, sobressaiam as mulheres com coloridos saris e flores naturais nos cabelos, a condizer com as sedas finas e leves, que usavam, daí resultando um espectáculo colorido, fascinante, ímpar.

Embora os homens se vestissem à ocidental: camisas de seda e calças escuras, o noivo, curiosamente vestido de branco, usava, a distingui-lo dos trajes ocidentais, uma espécie de estola vermelha e um especial turbante branco.

A noiva, que chegou depois, vinha toucada de flores naturais, que acompanhavam a longa trança, entretecida pacientemente, num trabalho de cabeleireira que nenhuma cabeleireira ocidental conseguiria efectuar, julgo eu, tal a minúcia e delicadeza com que as flores estavam entrançadas, juntamente com os longos cabelos. O sari era de rica seda de tons roxo, vermelho e dourado.

Pudemos assistir ao casamento por gentileza dos familiares dos noivos, que nos acolheram com simpatia. Um casamento cujo ritual, complicado e demorado, me dispenso de relatar, porque não o entendi na sua espiritualidade e, como é evidente, falar de uma religião, neste caso o hinduísmo, sem o entender, é muito delicado. Posso apenas acrescentar que era lua cheia e que nessa altura havia muitos casamentos hindus. Porque para eles a lua cheia é sinónimo de prosperidade e, sobretudo, de fertilidade e felicidade também.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 16 – 3 – 1995

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Há algumas dezenas de anos, não muitas, li uma notícia que, apesar de simples, me deixou perplexa: a de que, em certos países da Europa, já altamente industrializados, se vendia água simples, como a da fonte de Bouçó, em garrafas. Eu, que só conhecia, comercializadas deste modo, as águas medicinais, encarei isto como algo jamais aceitável na nossa terra. Mas não tardou muito que isso viesse a acontecer.

Porém, para quem vive em Bouçó, ainda hoje não há necessidade de adquirir essa água, que não me parece melhor que a que, continuamente, jorra na velha fonte do lugar. Mas… Há sempre um “mas”. Alguém que se considera bem informado (alguns, diria melhor) vieram falar-me de ameaças sérias que parecem pairar sobre as águas desta parte da freguesia. E, a ser verdade , não há dúvida que ali acontecerá mais um dos pequenos desastres ecológicos, se esse empreendimento de que me falaram for autorizado. Um empreendimento altamente poluente, como o são, geralmente, as grandes explorações industriais de pocilgas, aviários ou vacarias. Não faltam exemplos de revolta popular, dos quais os media dão notícia, problemas difíceis de resolver, porque já instalados. Por aqui ainda nada disso aconteceu. Mas, sem dúvida que, a acontecer em Bouçó, será o adeus às boas águas da nossa fonte, dos nossos poços, dos nossos pequenos fios de água.

Mas, quanto a este hipotético problema de que me vieram falar, ninguém se mostrou muito disposto a concordar comigo e responderam-me, evocando, com desencanto, alguns exemplos que por aqui parece que vão acontecendo. E mais não me disseram nem me explicaram.

Que o tente averiguar quem disso tiver obrigação, porque profissionalmente preparado.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 4 – 7 – 1996

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Naquela época, o Natal era mais do que a ceia farta e sobremesas que só naquela altura comíamos.

Naquela época, o Natal era mais do que a azáfama na cozinha e a chegada dos avós com as suas misteriosas malas.

Naquela época o Natal era mais do que o findar de jejuns e abstinências, mais do que uma ceia diferente. Era a festa pela qual esperávamos desde meados de outubro, sem saber por que esperávamos. Sabíamos apenas que havia algo de místico e de misterioso, que até a essa noite nos conduzia.

Daquela época não guardo, portanto, lembrança de brinquedos espectaculares, esses que pouco esforço de imaginação exigem das crianças, e se destinam, muitas vezes, a serem aplaudidos e admirados pelos adultos, e também invejados pelos de bolsa mais magra.

Dessa época me ficaram na lembrança, mais do que a obtenção do desejado brinquedo, doces imagens do Natal popular, ingénuo e límpido, sem as seduções do consumismo prontamente adotado pelos citadinos, e só mais tarde pelos outros.

Daquela época não guardo lembranças desse pinheiro exótico que nada tinha a ver com os pinheiros bravos dos nossos montes e que gentes de outros países convencionaram chamar “Árvore de Natal”.

Daquela época não guardo lembranças de renas e trenós e de branca neve, e muito menos de um obeso Pai Natal com o saco repleto de brinquedos.

Dessa época guardo, isso sim, a imagem do presépio monumental que os rapazes da freguesia construíam num recanto da igreja, e do pequeno presépio que toscamente tentávamos imitar, num recanto da nossa sala, aonde chegavam, vindos da cozinha, o cheiro da canela e do açúcar, o som de palavras soltas e do vaivém dos passos.

E com esse frenesim as chegadas e as partidas, o trânsito das pessoas que, de olhar iluminado, iam consoar “lá” ou vinham “cá”. Os avós, a tia que vivia só, a prima viúva, as criadas (era assim que então se dizia), as quais passavam no caminho, ao fim da tarde, com o cesto da consoada à cabeça, coberto por toalha de linho, o qual escondia o recheio que tornaria rica a ceia na casa pobre dos pais.

Dessa época guardo, com serena emoção, a lembrança das novenas do Menino, dos cânticos acentuando o recolhimento íntimo, e da fé com que antecipadamente vivíamos o Natal, pelas madrugadas frias de dezembro. Novenas do Menino, a que se assistia à luz pardacenta do alvorecer, as quais eram abrilhantadas por uma tuna composta, entre outras, pela rabeca do Sr. Camilo, pelo violão do Joaquim do Rego e pela flauta do Zé da Vinha. Cânticos entoados pelas vozes soltas das mulheres e das raparigas: cânticos vigorosos, repercutindo-se na abóbada, onde S. Tiago – Padroeiro as olhava complacente.

Era um Natal vivido com simplicidade, na noite fria, onde estrelas cintilavam, e onde havia, nas casas, o lume de boa lenha que para esta noite se guardava. Fogueira a bailar alegremente, fazendo com que perto dela todos se reunissem fraternos e mais alegres, nos jogos que, com pinhões, as crianças improvisavam sob o olhar complacente e paciente dos adultos.

Não havia troca de prendas, nem tal era necessário, porque havia a espontânea troca de gestos fraternos, de palavras suaves, de olhares afetuosos e límpidos, que faziam daquele tempo um tempo que sentiam ser diferente, um tempo de mistério, de espectativa, de maravilha.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 21 – 12 – 2000

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Ao evocar aqui as ruas de Margão ou Pangim, não posso ignorar as chamadas “casas portuguesas”, casas de certo modo imponentes, com as sacadas a nível do primeiro andar sobre a rua e as suas portas envidraçadas, as quais começam a ser restauradas, para de novo serem habitadas.

Há porém um outro tipo de casas que abunda ao longo das estradas e que é considerado como o tipo de casa goesa. Casas pequenas, de rés-do-chão, com varanda alpendrada na frente, onde geralmente os goeses gostam de dormir a sesta.

Casas recatadas, dentro de quintais, protegidas pela sombra dos coqueiros e embelezadas por maciças buganvílias sobre os muros dos terreiros onde porcos negros de comprido focinho se passeavam calmamente como se de cães de guarda se tratasse e onde por vezes se deparava com mantas estendidas, manchadas de vermelho pelas muitas pequenas vagens de pimenta a secar ao sol, a par de outras onde os grãos de arroz da segunda colheita, colheitas pequenas, obtidas na frescura dos vales, perto da floresta, secavam tão bem. Por vezes uma ou outra vaca dormia aí pachorrentamente, como se todas as horas do dia fossem horas de dormir a sesta.

Casas graciosas, não pelo estilo extremamente simples das suas paredes e telhado, mas pelas janelas. Janelas de um modo geral arredondadas na parte superior, frequentemente pintadas de azul, com caixilharia caprichosamente recortada, sobretudo na parte superior.

Mas para além de todos esses pormenores da sua graciosidade, uma coisa havia que as tornava únicas ao nosso olhar: a distinção que no geral fazem os seus proprietários ao informar quem passa, se a família que a habita é cristã ou hindu. No primeiro caso é uma cruz colocada no jardim ou junto à entrada. E no segundo uma espécie de pequeno obelisco, algumas vezes pintado de cores fortes, com um vaso de plantas colocado na parte superior como ornamento.

Mas o que mais impressiona é a convivência entre cristãos e hindus, cada qual com a sua religião, os seus costumes, o respeito pelo outro. Exemplo vivo de como a paz é possível.

Lição de compreensão, e respeito e tolerância mutuas, que o mundo poderia aprender, se quisesse.

A propósito, lembro-me desses lamentáveis incidentes, não há ainda muito tempo, que começaram num país muçulmano, onde os hindus residentes foram de tal modo maltratados que se refugiaram na Índia, aqueles que escaparam com vida. E logo como contrapartida, os muçulmanos da Índia, sofreram as inevitáveis represálias por parte dos hindus.

Goa, porém, onde cerca de 2% da população é muçulmana, passou ao largo de todos esses lamentáveis incidentes. E se acaso os muçulmanos de Goa se sobressaltaram, o sobressalto não passou daí, e a paz continuou, como é hábito, no seu dia a dia goês.

Quantas lições não se poderiam colher deste exemplo de coexistência pacífica, deste espírito de paz e compreensão, que em Goa domina gestos e vontades.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 18 – 6 – 1995

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Escutar uma banda de música é sempre agradável e julgo não exagerar afirmando que as bandas de música jamais serão destronadas pela música gravada, essa que grita nas romarias, as suas estridências por vezes arrepiantes, de pôr os nervos em franja.

Portanto, se escutar uma banda de música é um aprazimento, escutá-la longe, muito longe destas terras é, por vezes, a saudade, o enternecimento. Mas escutar essa banda executando o Hino Nacional de Portugal é muito mais que tudo isso junto. E se os acordes acompanharem o hastear da nossa bandeira, é a emoção a dar lugar ao empolgamento, a comoção que leva à vizinhança das lágrimas.

Aconteceu isso connosco, no dia da inauguração do consulado de Portugal em Goa, quando na hora própria, a banda, constituída por goeses, executou o hino nacional de Portugal, enquanto a bandeira das quinas ia subindo lentamente no mastro.

Não sei por quanto tempo o nosso olhar ficou preso na bandeira verde e rubra, ao lado da azul da CE, hasteada logo de seguida, ambas a drapejar aos ventos brandos de Goa, lá no alto do terraço do edifício, onde o Consulado ficou instalado. Sei apenas que é difícil explicar o que sente quem, estando do outro lado do Globo, vê de súbito as distâncias anularem-se e se deixa envolver por essa fraternidade muito especial, que a compreensão da língua portuguesa torna mais profunda.

Poderá parecer pieguice, essa pieguice que geralmente se receia e leva, numa situação destas, a tentar apagar qualquer vestígio de emoção.

Essa mesma que surpreendi no olhar de um jovem componente do nosso grupo que, num sorriso contrafeito, murmurou sem se dirigir a ninguém em especial: “ nunca pensei que isto mexesse assim tanto comigo, pá! Acho que estou a ficar velho…” Acrescentou ainda, tentando uma justificação para este breve estado emocional, que a sua condição de latino impelia a rejeitar.

Mas era a realidade, essa maneira de ser portuguesa, que só por si explica o desejo de voltar à terra de origem por muito bem que, materialmente se esteja numa terra de adoção.

Não se tratava aqui, porém, de um fenómeno de emigração mas de algo mais. Era o regresso (em moldes diferentes) de Portugal ao Oriente. Essa terra que nos recebia de braços abertos – lia-se no olhar dos muitos goeses que ali estavam, assistindo à inauguração.
Horas depois, no jantar incluído nestas cerimónias, e onde houve o cuidado de sentar às compridas mesas goeses e portugueses intercaladamente, razão das animadas conversas que em português se estabeleceram, no momento dos discursos que estas circunstâncias sempre exigem, o Cônsul Geral de Portugal, o primeiro a falar, disse mais ou menos estas palavras: ”Nós portugueses somos pequenos em muitas coisas, mas há uma em que realmente somos grandes: é a alma. Porque se não fosse a nossa grandeza de alma eles não nos teriam aceitado de volta!” Eles, os goeses, evidentemente…

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 5 – 1 – 1995

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Há quem, referindo-se a Goa, se detenha a enumerar os vários erros da colonização portuguesa, e um deles é o facto de se ter construído mais igrejas do que escolas (li isso ainda há pouco) esquecendo-se o articulista de que é errado avaliar factos antigos à luz da civilização actual, porque cada época tem os seus valores, e estes que agora nos parecem justos, talvez não sejam como tal considerados daqui a um século ou talvez menos.

Igualmente a colonização portuguesa em Goa é acusada de não ter desenvolvido economicamente esse território, tanto mais que, sabe-se, o seu subsolo é muito rico em minério. Mas se isso é verdade, é também verdade que não delapidou esses bens, tal como outros colonizadores fizeram nas terras que ocuparam.

Esses bens estão lá e começam agora a ser explorados pelos goeses, como por exemplo as minas de ferro a céu aberto, que tivemos ocasião de observar de longe, minas onde actualmente trabalham largas centenas de indianos, milhares talvez, delas se extraindo o minério que barcos transportam pelo rio até ao Porto de Mormugão, esse porto tão profundamente ligado à presença portuguesa por aquelas bandas.

Minas de grande produção – disseram-nos – elas são propriedade quase exclusiva de um só homem, que tivemos oportunidade de conhecer, o qual detém cerca de 90% das acções, segundo nos confidenciaram quando, pouco depois da nossa chegada, um amável convite, seu e de sua mulher, nos chegava às mãos. Um convite para um jantar que teria lugar na sua casa, na localidade ainda hoje chamada de Vasco da Gama.

E foi fatigados ainda, e mal adaptados a esse clima densamente húmido e quente que, no dia seguinte ao da nossa chegada, tomámos lugar, ao anoitecer, nos autocarros que haveriam de nos conduzir até à residência de Mister Salgaocar e esposa.

A casa, de linhas modernas, muito ampla, entre extensos relvados e jardins, não nos surpreendeu quanto à sua imponência, porque era mais ou menos assim que a imaginávamos. Tanto mais que nos haviam dito ser ele um dos homens mais ricos da Índia, no que, admite-se, talvez de grandezas e misérias, terra de extremos, há como se sabe miséria intensa e fortunas colossais. Mas mesmo admitindo que, em vez da Índia, fosse dos homens mais ricos de Goa, era sem dúvida riquíssimo, para mais casado com uma das herdeiras mais ricas da sua geração.

Mas, devo dizê-lo, não foram as suas riquezas que nos impressionaram. Foi, isso sim, a simplicidade do jovem casal que além de ser jovem, era belo e simpático. Inteligente, muito possivelmente, o qual nos recebeu com essa simpatia própria de quem sabe as regras da cortesia e as põe em prática de modo muito simples.

E, de facto, quem observasse aquele homem em mangas de camisa, à ocidental, de sorriso simples, ao lado da sua elegante esposa (de sari, como seria de esperar) recebendo-nos amavelmente, preocupando-se com os cocktails que nos foram servindo até à hora do jantar, não poderia imaginar ser aquele um dos homens mais ricos, senão da Índia, pelo menos de Goa.


Atitude que mais nos impressionara, ainda, se compararmos esse comportamento com o de alguns dos novos ricos que por cá se julgam (problema de imaginação exacerbada) senhores de meio mundo, os quais muito teriam a aprender com este exemplo vivo do que é ser rico e aceitar a riqueza com humildade ou, pelo menos, sem desastradamente ou intencionalmente humilhar os outros, aqueles que, por qualquer razão, nunca tiveram mais do que tostões contados, um a um.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 12 – 1 – 1995

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Olhando com a mágoa de sempre o Rio Este, ainda há poucos anos cobiçado pelos pescadores desportivos e, por isso mesmo, vigiado pelos então denominados “Guarda-Rios”, profissão que, segundo julgo, se extinguiu por já não haver nenhum rio para guardar, lembro-me dos rios de Goa.

Rios de peixe, tal como mar de peixe é o Mar Arábico, que banha a costa ocidental da Índia, onde Goa se situa e, mais lá para o norte, a cerca de mil quilómetros, esses antigos estados portugueses de Damão e Diu, ali bem perto do mar, tal como Portugal.

Mar de peixe. Dadivoso, magnânimo. Mar de peixes enormes, a pesarem muitos e muitos quilos, os quais nos assombravam quando cozinhados inteiros, deles, os cozinheiros impecavelmente vestidos de branco, tiravam pequenos pedaços para os nossos pratos, durante os jantares ao ar livre, em diversos locais de Goa, de que fraternalmente participámos.

Mar de peixe, rios de peixe. Rios limpos, sem necessidade de guarda-rios para os vigiar. Rios com vida, porque a ganância desenfreada, a falta de sensibilidade que embota as consciências e deixa matar um rio ainda lá não se instalou, felizmente para eles, os goeses.

E porque o peixe é abundante e saboroso, continua presente nos seus hábitos alimentares. E de tal modo arreigado, que os habitantes de outros estados indianos contaram-nos que, se acaso se demoram em Goa, criticam os goeses por este hábito alimentar sem que consigam modificá-lo.

E a solução é retirarem-se ou adaptarem-se, porque é muito difícil fazer com que um goês deixe de comer o arroz e o peixe mais o caril, esse condimento que se obtém pela mistura de especiarias e algumas plantas aromáticas a que, em Goa, se costuma juntar coco ralado para, depois de tudo bem triturado e reduzido a pó, ser utilizado como condimento tanto ao gosto deles.

Ao gosto deles, evidentemente, que quanto a nós esse gosto, por vezes, se transformava em castigo. Um castigo idêntico ao adotado noutras eras, em algumas famílias, onde havia o costume de deitar pimenta na língua às criancinhas que proferiam irreverências.

Dificilmente os goeses aceitavam a nossa relutância quanto às especiarias. E o mais curioso era ouvir deles, até de médicos “que o caril não fazia mal à saúde”. Então porquê vedá-lo nos regimes dietéticos daqueles que sofrem de problemas do aparelho digestivo? Claro que não pretendo abrir aqui uma discussão cuja exclusividade é do foro médico.

Mas que gostava de saber até onde se pode aceitar a opinião dos goeses quanto ao seu caril, sem dúvida que gostava.


Crónica publicada no jornal de Barcelos de 9 – 3 – 1995

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Uma das imagens que gosto de evocar, evocando Goa, é a dos seus rios, dos quais já aqui falei, sendo o rio Sal o mais familiar para todos nós, que alojados estávamos perto deste rio, tal como os outros dois, mais ao norte, o Zuari e o Mandovi, poderosos e de grande importância na economia goesa.

Mas há outros rios pequenos, de pouca água, que para além de refrescarem a terra por onde passam, nenhuma outra vantagem terão para essa economia a não ser oferecer ao turista que experimente aventurar-se pela floresta, um cenário intacto na sua pureza essencial.

Rios pequenos que atravessam a floresta, de entre os quais o mais fascinante é o rio Dushagar que, antes de ser rio é cascata, a precipitar-se torrencialmente pela vertente, até se deter numa espécie de lagoa circular que amansa as suas águas e depois de as deixar correr pela floresta densa, num leito profundo, semeado de rochas xistosas, leito escavado ao longo de milénios.

Rio Dushagar, ou seja, rio de leite (traduzido) na brancura das suas espumas, precipitando-se em cascatas pela vertente, esse lugar onde não chegaria notícia da civilização, não fosse a passagem do comboio por sobre o leito da cascata, a meio da vertente, em alto pontão que a engenharia construiu. O único elemento de civilização ali presente, talvez para que os passageiros finalmente se maravilhem com os prodígios de uma natureza poderosa e sábia.

Mas se os passageiros podem, em parte, observar a queda impetuosa das águas, todo o restante percurso do rio Dushagar lhes é vedado ao olhar, sobretudo o agressivo leito depois da cascata.

Este percurso que tivemos de vencer para atingir a cascata, sem outra alternativa que não fosse a de saltar de pedra em pedra, rodeada por um cenário de árvores, água, montanhas, o oposto de um cenário conservado para turista ver comodamente e pagar por essa comodidade. Um cenário intacto na sua pureza inicial, antecedido por um outro idêntico, que tivemos de percorrer, até atingir as proximidades deste rio.

Cenário de árvores, rios e veredas que fomos desvendando, instalados em jipes seguramente conduzidos por experimentados motoristas goeses, habituados a estas andanças pela floresta. Experiência confirmada na decisão com que desciam as pequenas ribanceiras, atravessavam a água dos rios, cujo leito de seixos era suficientemente sólido para aguentar o impacto das quatro rodas e logo subir a ribanceira da margem oposta, para continuar pelos trilhos da floresta e, daí a pouco, outros rios atravessar.

Rios de floresta de pouca água, a par de outros que de leito seco esperavam pacientemente pelas chuvas das monções que lhes hão de restituir a vida e o dinamismo das suas águas.

Rios tímidos e transparentes, onde já no regresso, ao entardecer, deparámos com grupos de homens indianos lavando o corpo num hábito de higiene muito próprio deste povo, e que talvez não seja do conhecimento dos ocidentais, porque outras imagens por cá divulgadas, mais sensacionais, serão mais susceptíveis de captar audiências para os meios de comunicação as divulgarem.

Rios de Goa, rios amados pelo povo, rios que purificam como se fossem prolongamento desse longínquo Ganges. Rios puros, mesmo quando as suas águas, por razões geográficas, são barrentas e densas. Rios amados. Em contraste com os nossos tão mal amados rios, estes rios desta desgastada Europa.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 30 – 3 – 1995 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Vou novamente falar desse estabelecimento hoteleiro de Goa que é o Leela Beach, o qual sendo do nível de muitos bons hotéis que há pelo mundo fora, teve para nos oferecer algo de especial. Algo mais do que a tranquilidade que ali se pode usufruir. Algo que não tem a ver com o conforto e o bem-estar de um hotel como aquele, onde os hóspedes de várias raças e nacionalidades deixam o tempo correr livremente sem tédio, porque se desejarem o ambiente citadino basta tomar um táxi.

Ao referir-me a esse hotel, quero realçar algo diferente que aí nos foi oferecido e se relaciona com a simpatia. Não essa simpatia profissional, de alto preço, mas antes uma outra mais sólida, mais autêntica, prolongamento de um espírito fraterno que em Goa se experimenta, e continua vivo e atuante, apesar das convulsões políticas. É algo vindo do fundo da História, que nos fala de amizade, de laços de sangue, de mãos que se encontram, e que aí esteve presente de tal modo que, desde o primeiro instante, nos sentimos privilegiados. Não pelos dólares, que não seriam tantos assim, mas antes por algo diferente, que viria reforçar as primeiras impressões colhidas logo à chegada.

Impressões e imagens de entre as quais se destaca a do pessoal da receção do hotel, alinhado à entrada, sorridente, à espera de nos dar as boas vindas e os colares de flores que depois nos colocaram ao pescoço, bem como na testa a pinta vermelha carregada de simbologia. E a música portuguesa, na voz do rapaz da viola, cantando em português para nós, quando já sentados no amplo salão da receção, tomámos contacto com o específico paladar do leite de coco, servido do fruto, que uma branca flor de hibisco embelezava.

Atenções que poderiam ser apenas fruto de um bom profissionalismo, se essas atenções não continuassem a elevar-se em muitas pequenas gentilezas que ultrapassavam essa situação, as quais culminaram com um jantar oferecido pelo hotel, representado na pessoa do seu administrador, de nacionalidade americana, o qual veio de mesa em mesa cumprimentar-nos um por um e desejar-nos continuação de boa estadia. Atitude profissional gentil, que em minha opinião se alicerça nessa verdade irrefutável que é a da amizade que, a despeito de correntes contrárias, continua a existir entre Portugal e Goa. Daí que esse jantar ficasse memorável, por todas essas gentilizas e também pela corrente de empatia que depois se estabeleceu entre o público, que éramos nós, e os artistas de variedades que vieram animar o jantar e, em improvisado palco, embora tivessem cantado profissionalmente em inglês, para alguns dos hóspedes do hotel, que conosco aí estavam e também passaram, a determinada altura, a falar português e a cantar quase só música portuguesa, desde folclore à música pop. Corrente de empatia que se transformou em entusiasmo e atingiu o rubro quando o apresentador do programa soltou o seu primeiro “Viva Portugal!”

Foram momentos indescritíveis, vividos até final nesse vasto recinto iluminado pela luz das lâmpadas e pela dos archotes, num chão de areia perto do mar, onde nada mais parecia existir a não ser portugueses de Portugal e seus familiares de Goa, unidos num abraço de muitos séculos.
Entusiasmo que só terminou quando os músicos exaustos por ter excedido em tempo o programa, se substituíram por música gravada, o que, como se compreende, fez abrandar a força da corrente de empatia que insistia em se manter indefinidamente.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 17 – 11 – 1994