quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Numa destas tardes domingueiras, aqui em Cambeses, ao folhear distraidamente uma dessas revistas que falam da moda feminina, vieram-me à ideia as mulheres de Goa e os belos saris que quase todas usavam.

Vi-as de sari a trabalhar no campo, mancha colorida nas extensas planícies de terra seca, amarelada. Vi-as nos vales, entre montanhas, nos pequenos campos de arroz, a ceifar manualmente a segunda colheita do ano. Vi-as carregar cestos à cabeça, vi-as na berma das estradas por onde circulávamos frequentemente. Vi-as pelas feiras ou pelas praias, tentando vender bugigangas aos turistas ocidentais.

Vi-as em Pangim, nas scooters como penduras, sentadas de lado, as sedas garridas esvoaçantes como asas coloridas de borboletas. E vi-as conduzindo elas próprias a scooter, como se em vez de sedas usassem jeans. E vi-as nas receções oficiais, usando-o com uma distinção e elegância que só elas o poderão conseguir.

Curiosamente uma das primeiras mulheres goesas com quem tive oportunidade de conversar no dia da inauguração do Consulado de Portugal em Goa, era uma senhora de sari verde, de cabelos já grisalhos, que falava correctamente o português, e cujo nome era, como o de tantos outros, português também. Além de médica, era presidente do instituto Indo-Português onde, sem qualquer apoio governamental, contra ventos e marés, ensinavam como podiam a língua portuguesa e estavam a preparar um curso de culinária portuguesa, tendo-me confidenciado haver muitos jovens que desejavam aprender o português para estabelecer contactos, não só com Portugal, mas com todo o mundo lusófono.

Mulher igualmente muito interessante, culta e simples, foi uma outra que dias depois conheci num jantar, numa outra localidade goesa. Médica também, e professora universitária, disse só usar o sari em ocasiões especiais como aquela, porque no uso da sua profissão, o sari não lhe deixava os movimentos livres, como é de calcular.

São modelos de vestuário feminino que, à parte um ou outro pequeno pormenor, não se alteram de uma geração para outra e são fáceis de confeccionar, segundo julgo.

Mas o maior conjunto de saris que me foi dado observar teve lugar num casamento hindu, no famoso templo Shiri Mangesh, ao lado dessa belíssima torre branca, conhecida por “Torre da luz”, o qual teve lugar, não na sala onde se guardam os símbolos sagrados da religião hindu, e onde os fieis se recolhem em oração, mas numa outra ala desse conjunto de edifícios, num amplo salão repleto de amigos, vizinhos e familiares dos noivos.

De toda essa assembleia, constituída por gente de idade vária, incluindo crianças, sobressaiam as mulheres com coloridos saris e flores naturais nos cabelos, a condizer com as sedas finas e leves, que usavam, daí resultando um espectáculo colorido, fascinante, ímpar.

Embora os homens se vestissem à ocidental: camisas de seda e calças escuras, o noivo, curiosamente vestido de branco, usava, a distingui-lo dos trajes ocidentais, uma espécie de estola vermelha e um especial turbante branco.

A noiva, que chegou depois, vinha toucada de flores naturais, que acompanhavam a longa trança, entretecida pacientemente, num trabalho de cabeleireira que nenhuma cabeleireira ocidental conseguiria efectuar, julgo eu, tal a minúcia e delicadeza com que as flores estavam entrançadas, juntamente com os longos cabelos. O sari era de rica seda de tons roxo, vermelho e dourado.

Pudemos assistir ao casamento por gentileza dos familiares dos noivos, que nos acolheram com simpatia. Um casamento cujo ritual, complicado e demorado, me dispenso de relatar, porque não o entendi na sua espiritualidade e, como é evidente, falar de uma religião, neste caso o hinduísmo, sem o entender, é muito delicado. Posso apenas acrescentar que era lua cheia e que nessa altura havia muitos casamentos hindus. Porque para eles a lua cheia é sinónimo de prosperidade e, sobretudo, de fertilidade e felicidade também.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 16 – 3 – 1995

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Há algumas dezenas de anos, não muitas, li uma notícia que, apesar de simples, me deixou perplexa: a de que, em certos países da Europa, já altamente industrializados, se vendia água simples, como a da fonte de Bouçó, em garrafas. Eu, que só conhecia, comercializadas deste modo, as águas medicinais, encarei isto como algo jamais aceitável na nossa terra. Mas não tardou muito que isso viesse a acontecer.

Porém, para quem vive em Bouçó, ainda hoje não há necessidade de adquirir essa água, que não me parece melhor que a que, continuamente, jorra na velha fonte do lugar. Mas… Há sempre um “mas”. Alguém que se considera bem informado (alguns, diria melhor) vieram falar-me de ameaças sérias que parecem pairar sobre as águas desta parte da freguesia. E, a ser verdade , não há dúvida que ali acontecerá mais um dos pequenos desastres ecológicos, se esse empreendimento de que me falaram for autorizado. Um empreendimento altamente poluente, como o são, geralmente, as grandes explorações industriais de pocilgas, aviários ou vacarias. Não faltam exemplos de revolta popular, dos quais os media dão notícia, problemas difíceis de resolver, porque já instalados. Por aqui ainda nada disso aconteceu. Mas, sem dúvida que, a acontecer em Bouçó, será o adeus às boas águas da nossa fonte, dos nossos poços, dos nossos pequenos fios de água.

Mas, quanto a este hipotético problema de que me vieram falar, ninguém se mostrou muito disposto a concordar comigo e responderam-me, evocando, com desencanto, alguns exemplos que por aqui parece que vão acontecendo. E mais não me disseram nem me explicaram.

Que o tente averiguar quem disso tiver obrigação, porque profissionalmente preparado.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 4 – 7 – 1996

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Naquela época, o Natal era mais do que a ceia farta e sobremesas que só naquela altura comíamos.

Naquela época, o Natal era mais do que a azáfama na cozinha e a chegada dos avós com as suas misteriosas malas.

Naquela época o Natal era mais do que o findar de jejuns e abstinências, mais do que uma ceia diferente. Era a festa pela qual esperávamos desde meados de outubro, sem saber por que esperávamos. Sabíamos apenas que havia algo de místico e de misterioso, que até a essa noite nos conduzia.

Daquela época não guardo, portanto, lembrança de brinquedos espectaculares, esses que pouco esforço de imaginação exigem das crianças, e se destinam, muitas vezes, a serem aplaudidos e admirados pelos adultos, e também invejados pelos de bolsa mais magra.

Dessa época me ficaram na lembrança, mais do que a obtenção do desejado brinquedo, doces imagens do Natal popular, ingénuo e límpido, sem as seduções do consumismo prontamente adotado pelos citadinos, e só mais tarde pelos outros.

Daquela época não guardo lembranças desse pinheiro exótico que nada tinha a ver com os pinheiros bravos dos nossos montes e que gentes de outros países convencionaram chamar “Árvore de Natal”.

Daquela época não guardo lembranças de renas e trenós e de branca neve, e muito menos de um obeso Pai Natal com o saco repleto de brinquedos.

Dessa época guardo, isso sim, a imagem do presépio monumental que os rapazes da freguesia construíam num recanto da igreja, e do pequeno presépio que toscamente tentávamos imitar, num recanto da nossa sala, aonde chegavam, vindos da cozinha, o cheiro da canela e do açúcar, o som de palavras soltas e do vaivém dos passos.

E com esse frenesim as chegadas e as partidas, o trânsito das pessoas que, de olhar iluminado, iam consoar “lá” ou vinham “cá”. Os avós, a tia que vivia só, a prima viúva, as criadas (era assim que então se dizia), as quais passavam no caminho, ao fim da tarde, com o cesto da consoada à cabeça, coberto por toalha de linho, o qual escondia o recheio que tornaria rica a ceia na casa pobre dos pais.

Dessa época guardo, com serena emoção, a lembrança das novenas do Menino, dos cânticos acentuando o recolhimento íntimo, e da fé com que antecipadamente vivíamos o Natal, pelas madrugadas frias de dezembro. Novenas do Menino, a que se assistia à luz pardacenta do alvorecer, as quais eram abrilhantadas por uma tuna composta, entre outras, pela rabeca do Sr. Camilo, pelo violão do Joaquim do Rego e pela flauta do Zé da Vinha. Cânticos entoados pelas vozes soltas das mulheres e das raparigas: cânticos vigorosos, repercutindo-se na abóbada, onde S. Tiago – Padroeiro as olhava complacente.

Era um Natal vivido com simplicidade, na noite fria, onde estrelas cintilavam, e onde havia, nas casas, o lume de boa lenha que para esta noite se guardava. Fogueira a bailar alegremente, fazendo com que perto dela todos se reunissem fraternos e mais alegres, nos jogos que, com pinhões, as crianças improvisavam sob o olhar complacente e paciente dos adultos.

Não havia troca de prendas, nem tal era necessário, porque havia a espontânea troca de gestos fraternos, de palavras suaves, de olhares afetuosos e límpidos, que faziam daquele tempo um tempo que sentiam ser diferente, um tempo de mistério, de espectativa, de maravilha.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 21 – 12 – 2000

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Ao evocar aqui as ruas de Margão ou Pangim, não posso ignorar as chamadas “casas portuguesas”, casas de certo modo imponentes, com as sacadas a nível do primeiro andar sobre a rua e as suas portas envidraçadas, as quais começam a ser restauradas, para de novo serem habitadas.

Há porém um outro tipo de casas que abunda ao longo das estradas e que é considerado como o tipo de casa goesa. Casas pequenas, de rés-do-chão, com varanda alpendrada na frente, onde geralmente os goeses gostam de dormir a sesta.

Casas recatadas, dentro de quintais, protegidas pela sombra dos coqueiros e embelezadas por maciças buganvílias sobre os muros dos terreiros onde porcos negros de comprido focinho se passeavam calmamente como se de cães de guarda se tratasse e onde por vezes se deparava com mantas estendidas, manchadas de vermelho pelas muitas pequenas vagens de pimenta a secar ao sol, a par de outras onde os grãos de arroz da segunda colheita, colheitas pequenas, obtidas na frescura dos vales, perto da floresta, secavam tão bem. Por vezes uma ou outra vaca dormia aí pachorrentamente, como se todas as horas do dia fossem horas de dormir a sesta.

Casas graciosas, não pelo estilo extremamente simples das suas paredes e telhado, mas pelas janelas. Janelas de um modo geral arredondadas na parte superior, frequentemente pintadas de azul, com caixilharia caprichosamente recortada, sobretudo na parte superior.

Mas para além de todos esses pormenores da sua graciosidade, uma coisa havia que as tornava únicas ao nosso olhar: a distinção que no geral fazem os seus proprietários ao informar quem passa, se a família que a habita é cristã ou hindu. No primeiro caso é uma cruz colocada no jardim ou junto à entrada. E no segundo uma espécie de pequeno obelisco, algumas vezes pintado de cores fortes, com um vaso de plantas colocado na parte superior como ornamento.

Mas o que mais impressiona é a convivência entre cristãos e hindus, cada qual com a sua religião, os seus costumes, o respeito pelo outro. Exemplo vivo de como a paz é possível.

Lição de compreensão, e respeito e tolerância mutuas, que o mundo poderia aprender, se quisesse.

A propósito, lembro-me desses lamentáveis incidentes, não há ainda muito tempo, que começaram num país muçulmano, onde os hindus residentes foram de tal modo maltratados que se refugiaram na Índia, aqueles que escaparam com vida. E logo como contrapartida, os muçulmanos da Índia, sofreram as inevitáveis represálias por parte dos hindus.

Goa, porém, onde cerca de 2% da população é muçulmana, passou ao largo de todos esses lamentáveis incidentes. E se acaso os muçulmanos de Goa se sobressaltaram, o sobressalto não passou daí, e a paz continuou, como é hábito, no seu dia a dia goês.

Quantas lições não se poderiam colher deste exemplo de coexistência pacífica, deste espírito de paz e compreensão, que em Goa domina gestos e vontades.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 18 – 6 – 1995

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Escutar uma banda de música é sempre agradável e julgo não exagerar afirmando que as bandas de música jamais serão destronadas pela música gravada, essa que grita nas romarias, as suas estridências por vezes arrepiantes, de pôr os nervos em franja.

Portanto, se escutar uma banda de música é um aprazimento, escutá-la longe, muito longe destas terras é, por vezes, a saudade, o enternecimento. Mas escutar essa banda executando o Hino Nacional de Portugal é muito mais que tudo isso junto. E se os acordes acompanharem o hastear da nossa bandeira, é a emoção a dar lugar ao empolgamento, a comoção que leva à vizinhança das lágrimas.

Aconteceu isso connosco, no dia da inauguração do consulado de Portugal em Goa, quando na hora própria, a banda, constituída por goeses, executou o hino nacional de Portugal, enquanto a bandeira das quinas ia subindo lentamente no mastro.

Não sei por quanto tempo o nosso olhar ficou preso na bandeira verde e rubra, ao lado da azul da CE, hasteada logo de seguida, ambas a drapejar aos ventos brandos de Goa, lá no alto do terraço do edifício, onde o Consulado ficou instalado. Sei apenas que é difícil explicar o que sente quem, estando do outro lado do Globo, vê de súbito as distâncias anularem-se e se deixa envolver por essa fraternidade muito especial, que a compreensão da língua portuguesa torna mais profunda.

Poderá parecer pieguice, essa pieguice que geralmente se receia e leva, numa situação destas, a tentar apagar qualquer vestígio de emoção.

Essa mesma que surpreendi no olhar de um jovem componente do nosso grupo que, num sorriso contrafeito, murmurou sem se dirigir a ninguém em especial: “ nunca pensei que isto mexesse assim tanto comigo, pá! Acho que estou a ficar velho…” Acrescentou ainda, tentando uma justificação para este breve estado emocional, que a sua condição de latino impelia a rejeitar.

Mas era a realidade, essa maneira de ser portuguesa, que só por si explica o desejo de voltar à terra de origem por muito bem que, materialmente se esteja numa terra de adoção.

Não se tratava aqui, porém, de um fenómeno de emigração mas de algo mais. Era o regresso (em moldes diferentes) de Portugal ao Oriente. Essa terra que nos recebia de braços abertos – lia-se no olhar dos muitos goeses que ali estavam, assistindo à inauguração.
Horas depois, no jantar incluído nestas cerimónias, e onde houve o cuidado de sentar às compridas mesas goeses e portugueses intercaladamente, razão das animadas conversas que em português se estabeleceram, no momento dos discursos que estas circunstâncias sempre exigem, o Cônsul Geral de Portugal, o primeiro a falar, disse mais ou menos estas palavras: ”Nós portugueses somos pequenos em muitas coisas, mas há uma em que realmente somos grandes: é a alma. Porque se não fosse a nossa grandeza de alma eles não nos teriam aceitado de volta!” Eles, os goeses, evidentemente…

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 5 – 1 – 1995

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Há quem, referindo-se a Goa, se detenha a enumerar os vários erros da colonização portuguesa, e um deles é o facto de se ter construído mais igrejas do que escolas (li isso ainda há pouco) esquecendo-se o articulista de que é errado avaliar factos antigos à luz da civilização actual, porque cada época tem os seus valores, e estes que agora nos parecem justos, talvez não sejam como tal considerados daqui a um século ou talvez menos.

Igualmente a colonização portuguesa em Goa é acusada de não ter desenvolvido economicamente esse território, tanto mais que, sabe-se, o seu subsolo é muito rico em minério. Mas se isso é verdade, é também verdade que não delapidou esses bens, tal como outros colonizadores fizeram nas terras que ocuparam.

Esses bens estão lá e começam agora a ser explorados pelos goeses, como por exemplo as minas de ferro a céu aberto, que tivemos ocasião de observar de longe, minas onde actualmente trabalham largas centenas de indianos, milhares talvez, delas se extraindo o minério que barcos transportam pelo rio até ao Porto de Mormugão, esse porto tão profundamente ligado à presença portuguesa por aquelas bandas.

Minas de grande produção – disseram-nos – elas são propriedade quase exclusiva de um só homem, que tivemos oportunidade de conhecer, o qual detém cerca de 90% das acções, segundo nos confidenciaram quando, pouco depois da nossa chegada, um amável convite, seu e de sua mulher, nos chegava às mãos. Um convite para um jantar que teria lugar na sua casa, na localidade ainda hoje chamada de Vasco da Gama.

E foi fatigados ainda, e mal adaptados a esse clima densamente húmido e quente que, no dia seguinte ao da nossa chegada, tomámos lugar, ao anoitecer, nos autocarros que haveriam de nos conduzir até à residência de Mister Salgaocar e esposa.

A casa, de linhas modernas, muito ampla, entre extensos relvados e jardins, não nos surpreendeu quanto à sua imponência, porque era mais ou menos assim que a imaginávamos. Tanto mais que nos haviam dito ser ele um dos homens mais ricos da Índia, no que, admite-se, talvez de grandezas e misérias, terra de extremos, há como se sabe miséria intensa e fortunas colossais. Mas mesmo admitindo que, em vez da Índia, fosse dos homens mais ricos de Goa, era sem dúvida riquíssimo, para mais casado com uma das herdeiras mais ricas da sua geração.

Mas, devo dizê-lo, não foram as suas riquezas que nos impressionaram. Foi, isso sim, a simplicidade do jovem casal que além de ser jovem, era belo e simpático. Inteligente, muito possivelmente, o qual nos recebeu com essa simpatia própria de quem sabe as regras da cortesia e as põe em prática de modo muito simples.

E, de facto, quem observasse aquele homem em mangas de camisa, à ocidental, de sorriso simples, ao lado da sua elegante esposa (de sari, como seria de esperar) recebendo-nos amavelmente, preocupando-se com os cocktails que nos foram servindo até à hora do jantar, não poderia imaginar ser aquele um dos homens mais ricos, senão da Índia, pelo menos de Goa.


Atitude que mais nos impressionara, ainda, se compararmos esse comportamento com o de alguns dos novos ricos que por cá se julgam (problema de imaginação exacerbada) senhores de meio mundo, os quais muito teriam a aprender com este exemplo vivo do que é ser rico e aceitar a riqueza com humildade ou, pelo menos, sem desastradamente ou intencionalmente humilhar os outros, aqueles que, por qualquer razão, nunca tiveram mais do que tostões contados, um a um.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 12 – 1 – 1995

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Olhando com a mágoa de sempre o Rio Este, ainda há poucos anos cobiçado pelos pescadores desportivos e, por isso mesmo, vigiado pelos então denominados “Guarda-Rios”, profissão que, segundo julgo, se extinguiu por já não haver nenhum rio para guardar, lembro-me dos rios de Goa.

Rios de peixe, tal como mar de peixe é o Mar Arábico, que banha a costa ocidental da Índia, onde Goa se situa e, mais lá para o norte, a cerca de mil quilómetros, esses antigos estados portugueses de Damão e Diu, ali bem perto do mar, tal como Portugal.

Mar de peixe. Dadivoso, magnânimo. Mar de peixes enormes, a pesarem muitos e muitos quilos, os quais nos assombravam quando cozinhados inteiros, deles, os cozinheiros impecavelmente vestidos de branco, tiravam pequenos pedaços para os nossos pratos, durante os jantares ao ar livre, em diversos locais de Goa, de que fraternalmente participámos.

Mar de peixe, rios de peixe. Rios limpos, sem necessidade de guarda-rios para os vigiar. Rios com vida, porque a ganância desenfreada, a falta de sensibilidade que embota as consciências e deixa matar um rio ainda lá não se instalou, felizmente para eles, os goeses.

E porque o peixe é abundante e saboroso, continua presente nos seus hábitos alimentares. E de tal modo arreigado, que os habitantes de outros estados indianos contaram-nos que, se acaso se demoram em Goa, criticam os goeses por este hábito alimentar sem que consigam modificá-lo.

E a solução é retirarem-se ou adaptarem-se, porque é muito difícil fazer com que um goês deixe de comer o arroz e o peixe mais o caril, esse condimento que se obtém pela mistura de especiarias e algumas plantas aromáticas a que, em Goa, se costuma juntar coco ralado para, depois de tudo bem triturado e reduzido a pó, ser utilizado como condimento tanto ao gosto deles.

Ao gosto deles, evidentemente, que quanto a nós esse gosto, por vezes, se transformava em castigo. Um castigo idêntico ao adotado noutras eras, em algumas famílias, onde havia o costume de deitar pimenta na língua às criancinhas que proferiam irreverências.

Dificilmente os goeses aceitavam a nossa relutância quanto às especiarias. E o mais curioso era ouvir deles, até de médicos “que o caril não fazia mal à saúde”. Então porquê vedá-lo nos regimes dietéticos daqueles que sofrem de problemas do aparelho digestivo? Claro que não pretendo abrir aqui uma discussão cuja exclusividade é do foro médico.

Mas que gostava de saber até onde se pode aceitar a opinião dos goeses quanto ao seu caril, sem dúvida que gostava.


Crónica publicada no jornal de Barcelos de 9 – 3 – 1995

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Uma das imagens que gosto de evocar, evocando Goa, é a dos seus rios, dos quais já aqui falei, sendo o rio Sal o mais familiar para todos nós, que alojados estávamos perto deste rio, tal como os outros dois, mais ao norte, o Zuari e o Mandovi, poderosos e de grande importância na economia goesa.

Mas há outros rios pequenos, de pouca água, que para além de refrescarem a terra por onde passam, nenhuma outra vantagem terão para essa economia a não ser oferecer ao turista que experimente aventurar-se pela floresta, um cenário intacto na sua pureza essencial.

Rios pequenos que atravessam a floresta, de entre os quais o mais fascinante é o rio Dushagar que, antes de ser rio é cascata, a precipitar-se torrencialmente pela vertente, até se deter numa espécie de lagoa circular que amansa as suas águas e depois de as deixar correr pela floresta densa, num leito profundo, semeado de rochas xistosas, leito escavado ao longo de milénios.

Rio Dushagar, ou seja, rio de leite (traduzido) na brancura das suas espumas, precipitando-se em cascatas pela vertente, esse lugar onde não chegaria notícia da civilização, não fosse a passagem do comboio por sobre o leito da cascata, a meio da vertente, em alto pontão que a engenharia construiu. O único elemento de civilização ali presente, talvez para que os passageiros finalmente se maravilhem com os prodígios de uma natureza poderosa e sábia.

Mas se os passageiros podem, em parte, observar a queda impetuosa das águas, todo o restante percurso do rio Dushagar lhes é vedado ao olhar, sobretudo o agressivo leito depois da cascata.

Este percurso que tivemos de vencer para atingir a cascata, sem outra alternativa que não fosse a de saltar de pedra em pedra, rodeada por um cenário de árvores, água, montanhas, o oposto de um cenário conservado para turista ver comodamente e pagar por essa comodidade. Um cenário intacto na sua pureza inicial, antecedido por um outro idêntico, que tivemos de percorrer, até atingir as proximidades deste rio.

Cenário de árvores, rios e veredas que fomos desvendando, instalados em jipes seguramente conduzidos por experimentados motoristas goeses, habituados a estas andanças pela floresta. Experiência confirmada na decisão com que desciam as pequenas ribanceiras, atravessavam a água dos rios, cujo leito de seixos era suficientemente sólido para aguentar o impacto das quatro rodas e logo subir a ribanceira da margem oposta, para continuar pelos trilhos da floresta e, daí a pouco, outros rios atravessar.

Rios de floresta de pouca água, a par de outros que de leito seco esperavam pacientemente pelas chuvas das monções que lhes hão de restituir a vida e o dinamismo das suas águas.

Rios tímidos e transparentes, onde já no regresso, ao entardecer, deparámos com grupos de homens indianos lavando o corpo num hábito de higiene muito próprio deste povo, e que talvez não seja do conhecimento dos ocidentais, porque outras imagens por cá divulgadas, mais sensacionais, serão mais susceptíveis de captar audiências para os meios de comunicação as divulgarem.

Rios de Goa, rios amados pelo povo, rios que purificam como se fossem prolongamento desse longínquo Ganges. Rios puros, mesmo quando as suas águas, por razões geográficas, são barrentas e densas. Rios amados. Em contraste com os nossos tão mal amados rios, estes rios desta desgastada Europa.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 30 – 3 – 1995 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Vou novamente falar desse estabelecimento hoteleiro de Goa que é o Leela Beach, o qual sendo do nível de muitos bons hotéis que há pelo mundo fora, teve para nos oferecer algo de especial. Algo mais do que a tranquilidade que ali se pode usufruir. Algo que não tem a ver com o conforto e o bem-estar de um hotel como aquele, onde os hóspedes de várias raças e nacionalidades deixam o tempo correr livremente sem tédio, porque se desejarem o ambiente citadino basta tomar um táxi.

Ao referir-me a esse hotel, quero realçar algo diferente que aí nos foi oferecido e se relaciona com a simpatia. Não essa simpatia profissional, de alto preço, mas antes uma outra mais sólida, mais autêntica, prolongamento de um espírito fraterno que em Goa se experimenta, e continua vivo e atuante, apesar das convulsões políticas. É algo vindo do fundo da História, que nos fala de amizade, de laços de sangue, de mãos que se encontram, e que aí esteve presente de tal modo que, desde o primeiro instante, nos sentimos privilegiados. Não pelos dólares, que não seriam tantos assim, mas antes por algo diferente, que viria reforçar as primeiras impressões colhidas logo à chegada.

Impressões e imagens de entre as quais se destaca a do pessoal da receção do hotel, alinhado à entrada, sorridente, à espera de nos dar as boas vindas e os colares de flores que depois nos colocaram ao pescoço, bem como na testa a pinta vermelha carregada de simbologia. E a música portuguesa, na voz do rapaz da viola, cantando em português para nós, quando já sentados no amplo salão da receção, tomámos contacto com o específico paladar do leite de coco, servido do fruto, que uma branca flor de hibisco embelezava.

Atenções que poderiam ser apenas fruto de um bom profissionalismo, se essas atenções não continuassem a elevar-se em muitas pequenas gentilezas que ultrapassavam essa situação, as quais culminaram com um jantar oferecido pelo hotel, representado na pessoa do seu administrador, de nacionalidade americana, o qual veio de mesa em mesa cumprimentar-nos um por um e desejar-nos continuação de boa estadia. Atitude profissional gentil, que em minha opinião se alicerça nessa verdade irrefutável que é a da amizade que, a despeito de correntes contrárias, continua a existir entre Portugal e Goa. Daí que esse jantar ficasse memorável, por todas essas gentilizas e também pela corrente de empatia que depois se estabeleceu entre o público, que éramos nós, e os artistas de variedades que vieram animar o jantar e, em improvisado palco, embora tivessem cantado profissionalmente em inglês, para alguns dos hóspedes do hotel, que conosco aí estavam e também passaram, a determinada altura, a falar português e a cantar quase só música portuguesa, desde folclore à música pop. Corrente de empatia que se transformou em entusiasmo e atingiu o rubro quando o apresentador do programa soltou o seu primeiro “Viva Portugal!”

Foram momentos indescritíveis, vividos até final nesse vasto recinto iluminado pela luz das lâmpadas e pela dos archotes, num chão de areia perto do mar, onde nada mais parecia existir a não ser portugueses de Portugal e seus familiares de Goa, unidos num abraço de muitos séculos.
Entusiasmo que só terminou quando os músicos exaustos por ter excedido em tempo o programa, se substituíram por música gravada, o que, como se compreende, fez abrandar a força da corrente de empatia que insistia em se manter indefinidamente.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 17 – 11 – 1994

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Reparei há tempos num jornal diário com uma fotografia da “Linha da Póvoa”, denunciadora do abandono a que a mesma foi votada pela CP e, a acompanhar a foto, uma curta frase: “E ninguém se importa!”

É na verdade um triste exemplo igual a outros. Li a notícia com alguma mágoa e, por uma associação de ideias, lembrei-me dos velhos caminhos rurais que não servem a tractores e, muito menos, a automóveis e, por isso mesmo, são votados ao abandono. Como se o caminhar a pé não fosse útil sob vários aspetos, incluindo a saúde. E, ante a imagem desses caminhos centenários, surpreendi-me a reflectir.

Todos sabemos que a história de uma terra faz-se sobretudo através de documentos escritos. Mas faz-se também através das suas pedras, que o mesmo é dizer, de monumentos, e ainda através das suas ruas e praças, para só falar destes elementos. No espaço rural também a história se faz igualmente através de documentos e pedras, sobretudo a partir dos caminhos rurais, esses caminhos que em Cambeses gosto de percorrer, se me é possível.

Por essa razão, além de outras, não posso deixar de aqui falar do caminho que, do lugar de Bouçó sobe até à Igreja Paroquial, afundado entre duas quintas, caminho centenário, com uma longa história, feita de muitos passos.

Pois bem. Esse caminho de encosta, em grande parte escalavrado por enxurradas invernosas, o que dificultou os passos de quem dela precisava, tem sofrido, sobretudo de há uns anos a esta parte, as derrocadas dos muros das duas quintas, sem que os proprietários sejam obrigados a retirar pedras e entulho da via pública. E, como se isso não bastasse, há uma poça rente ao caminho, pertença de uma das quintas, que para aí deixa escapar as águas, tornando intransitável o resto do percurso num caminho que é de todos. E para dizer como o autor do artigo referido: “E ninguém se importa!” com o que se faz a este e outros caminhos.

Houve uma altura, já lá vão anos, em que a situação melhorou, devo dizê-lo: o caminho foi limpo, restaurado dentro do possível, honra seja feita à Junta de Freguesia e aos moradores de Bouçó, Lama e Vinha, que contribuíram com o dinheiro para a manutenção do mesmo. Depois, por culpa de não sei quem, o caminho voltou ao abandono e assim está. E porque é quase impossível percorrê-lo (sei-o por experiência própria) os moradores foram obrigados a deixar de o utilizar.

Pode portanto alegar-se, tal como a CP, que há poucos utentes. Pois não. E quem se atreve por um chão daqueles, impraticável sob um teto de silvas e ramaria diversa? Pode alegar-se que há uma estrada e há o automóvel para ir à igreja. Pois é, só que nem toda a gente conduz. E o que acontece é os moradores serem obrigados a dar o dobro dos passos (e muitos dão) pelo percurso alternativo, percurso estafante, sobretudo para os menos jovens e menos fortes.

Portanto, se os transtornos causados não são de levar em conta, certo será que o abandono se instalará definitivamente, tal como na linha da Póvoa, porque essa é a decisão mais cómoda.

É pena, porque é um caminho com uma longa história, um caminho percorrido durante séculos, obrigatoriamente. Claro que nas cidades a ligação à igreja não é tão intensa, por isso este texto dificilmente seria entendido por Lisboa ou Porto. Mas nas aldeias essa ligação continua, apesar de tudo. Mas isso é outro assunto.

Por hoje propus-me falar apenas de velhos caminhos abandonados, irmãos no infortúnio das modestas linhas da CP. Caminhos tão veneráveis e tão humanizados como estes que aqui falei num SOS muito possivelmente inútil, porque “ninguém se importa” apesar da sua utilidade e sobretudo da sua longa história, feita de muitos passos:

Passos leves, ainda infantis, a caminho da Catequese. Passos jovens, pressurosos, de mal contida alegria, nos dias mais marcantes da sua vida. Passos arrastados, penosos, de quem cumpre a reta final. Percurso sem passos (o último) de quem cumpriu já o percurso que lhe fora dado cumprir.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 11 – 10 – 1996

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Num destes últimos domingos, fui forçada a mais uma aventura pela estrada de Barcelos e, novamente, o caos aí esteve arreliador a ameaçar a todo o momento, não só com “toques” mas até com coisa pior. E isto porque parece nada haver, pelos vistos, que obrigue a atuar como gente civilizada certos cidadãos que civilizados se julgam só porque conduzem um carro.

Basta observar o pandemónio que aos domingos continua a verificar-se à porta das discotecas e restaurantes que há pelas aldeias. Evidentemente que não são todos, os que assim procedem. Será uma reduzida minoria, se percentualmente considerados. Mas são o suficiente para perturbarem quem, por necessidade ou prazer a que tem direito, circulam por estas estradas camarárias.

E, a este propósito, não posso deixar de me lembrar do trânsito nos países do Oriente, onde me foi dado circular. Excluindo a Malásia e a Coreia do Sul, ou ainda a Ilha Formosa, onde as auto-estradas abundam e as bicicletas quase não existem, o pandemónio nesses países era total. Ou antes, seria se acaso ele se processasse com os nossos desabridos condutores e não com gente paciente como o são os chineses e os indianos também.

E lembro-me m especial das estradas de Goa, onde dois autocarros, para se cruzarem, um deles tinha de se arrumar na valeta, evitando, no último segundo o choque que parecia eminente, tudo se resolvendo sem impaciências nem insultos, como por cá se presencia às vezes, mas antes com compreensão e esse dom que falta a alguma gente bem enfarpelada e se chama “Boa Educação”.

Mas quando não era o cruzamento entre dois carros a reter-nos a respiração, eram outros os obstáculos, desde um pachorrento carro de bois, perdão, de búfalos, que continuava na nossa frente sem que o condutor do nosso autocarro ou do táxi se irritasse, ou então era “vaca sagrada”, como todas, que resolvia dormir a sesta em plena estrada, a qual se tinha de contornar com perícia, ou então um porco ou uma porca com uma ninhada de filhotes atrás, que se lembrava de atravessar a estrada, ou até o pequeno bando de galinhas, ou um simples cão que, no último momento, o motorista, com perícia, evitava atropelar.

Claro que as condições de vida na India são outras que não as do ocidente, embora em Goa não haja, como aqui já tive ocasião de referir, essa espectacular miséria que se pode observar nas grandes cidades da Índia.

E se não há, consequentemente, pelas estradas de Goa, esta nossa profusão de carros novos, há, o que para mim é bem mais positivo, um espírito de compreensão e respeito (e pelos animais também), e algo mais que se chama delicadeza, sensibilidade, educação.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 29 – 9 – 1994

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Diz quem das estatísticas se ocupa, que Portugal é, a nível da CEE, um país onde se verifica um dos mais baixos índices de leitura.

Há quem justifique esta situação alegando que o livro é caro, embora saibamos que é possível adquirir livros baratos desde que não se deixe dominar pelo fascínio de uma recente edição, sobretudo se esta for de luxo, desde que saiba aproveitar as feiras e desde que se disponha a pacientemente procurar, nos alfarrabistas, obras do seu agrado.

Além disso há as bibliotecas que oferecem, como se sabe, consulta grátis dos seus livros, bem como leitura domiciliária, que é para isso mesmo que essas bibliotecas públicas, ou municipais, foram criadas.

Embora me sinta tentada a fazê-lo, não vou estabelecer comparações entre o preço de um bilhete para futebol ou para um espectáculo de variedades, e o preço de um livro de aspeto gráfico minimamente apresentável, já que todos sabemos que esses ingressos são de preço elevado, por vezes bastante elevado, e apesar disso têm muita procura.

Não estabeleço, repito, comparações, mas não resisto a falar das livrarias, que entre nós, cada vez mais são menos, sinal evidente de que cada vez se “consome” menos livros.

E, a propósito, vem-me à ideia algumas cidades estrangeiras onde as livrarias são numerosas e, a este propósito, não posso deixar de citar aqui o que, tempos atrás, pude observar na cidade de Nápoles, onde me foi dado estar como participante no congresso “Portugal e os Mares”, organizado pela Faculdade de Letras daquela cidade.

Faltavam poucos dias para o Natal. As ruas estavam iluminadas, como é costume nesta época, e havia muita gente na rua. Mas não havia apenas profusão de lojas de modas ou de brinquedos. Havia também uma presença acentuada de livrarias e nelas a presença de clientes interessados. E havia vendedores ambulantes, com o seu tabuleiro de livros em vez de bugigangas. E para eles havia clientes também.

E é pensando nisto tudo que me sinto um tanto ou quanto perplexa, e recordo o que me dizia há tempos um responsável dinâmico de uma biblioteca municipal: “É costume, porque fácil, responsabilizar-se o poder central por este estado de coisas, mas se todas as câmaras, através do seu pelouro da cultura e das bibliotecas, ativassem os necessários maquinismos para atraírem potenciais leitores, sobretudo entre a gente jovem, o gosto pela leitura e pelas acções a que a literatura anda ligada aumentariam, e então talvez deixássemos de ser esse povo quase ignorante, que não compra livros mas gasta o bastante com o clube da sua preferência, esse mesmo que o presidente da sua câmara patrocina de modo especial.”

Ou aquele que não compra livros porque são caros, mas a aparelhagem de som que possui não condiz com esse seu sentido de economia. E muito menos o carro (que poderia ser menos dispendioso) que lhe enche o peito de vento e o faz sentir-se outro homem quando se senta ao volante.

Será que estou a exagerar?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 11 – 1 – 1996

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Há por parte dos goeses um carinho muito especial pelos animais, não um carinho exibicionista pelos cães ou gatos de luxo, como às vezes se observa, mas antes uma outra espécie de carinho, onde a compreensão e preocupação pela sua vida estão presentes.

Desde as barulhentas gralhas que todo o dia nos enchem os ouvidos com o seu vozear rouco e insistente, até às famosas “vacas sagradas".

Vacas pertencentes a uma raça bovina muito resistente que vai comendo o que pode e não necessita de cuidados especiais para sobreviver. Ao contrário do que se pensa têm dono e, geralmente, voltam a casa ao anoitecer sem que ninguém as guie. E em segurança porque ninguém as rouba e, muito menos, as maltrata.

Delas, aproveitam o leite, que é escasso, dado o modo como se alimentam. E como não são fortes como aqueles bois que, ainda não há muitos anos víamos puxando os nossos arados e carros, elas são substituídas pelos búfalos domesticados: animais menos corpulentos, de chifres arqueados como quartos de lua voltados para o dorso negro.

Mas se as vacas são um dos ex-libris da Índia, neste caso de Goa, também há outra espécie de animais, ou melhor, de aves, que em Goa não se podem ignorar: as gralhas, essas que todos os dias nos acompanhavam com os seus gritos cavos, repetidos, a saltitar de ramo em ramo, astutas e precavidas, pelos jardins do nosso hotel, sem que aí nada se fizesse para as afugentar e, muito menos, destruir.

Mas nesse hotel de turismo, embora pertencente a uma cadeia internacional de hotéis, sabia-se cultivar o respeito pelas espécies naturais indígenas como se as normas que o regem fossem apenas goesas. Daí a presença de certo modo inevitável e bem aceite, não só das gralhas, mas também de animais domésticos, desde os cavalos que os hóspedes podiam montar, se soubessem evidentemente, até aos bandos de patos, brancos e barulhentos, que à tardinha víamos cirandar pelos relvados, com a finalidade – disseram-me – de detetar a presença indesejável de alguma cobra.

Se de facto assim é, aí está mais uma prova de como saber usar os meios que a própria natureza coloca ao alcance do homem para combater possíveis perigos, neste caso as cobras. E na verdade, que eu saiba, nunca nenhum hóspede se deparou com essa presença indesejável.

E muitas há em Goa, como em toda a Índia, das quais algumas raças são venenosas, incluindo a temível cobra-capelo que, na feira de Mapuçá vimos, obediente e dócil, erguer-se do cesto do encantador de serpentes sem ultrapassar os seus limites.

Imagem impressionante, com a sua carga de exotismo e mistério, a par de muitas outras imagens, mais acessíveis à nossa compreensão e que, por razões óbvias, sou levada a referir ao longo destas crónicas.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 8 – 12 – 1994

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

 Há dias, em Cambeses, olhando a paisagem de casas novas, incaracterísticas, que pontilham essa paisagem de intensa verdura, construções que, em grande parte, vieram substituir as oitocentistas e venerandas casas de lavoura, lembrei-me de Goa. 

E embora tivesse decidido não voltar a este tema, aqui estou para dizer que me lembrei, não pelo verde das encostas, mas pelas casas que, involuntariamente, trouxeram até mim a imagem das casas residenciais, que em Goa se denominam “casas portuguesas”, porque na sua traça têm muito da arquitectura ocidental: casas de primeiro andar, com sacadas abertas sobre a rua, e cujas portas envidraçadas ostentam, por vezes, vidros coloridos, de cores fortes, cores tão do agrado dos goeses. Cores que fazem ressaltar o caprichoso recorte das “bandeiras” que encimam as portas e condizem
com o rendilhado, fruto de artístico labor, que é o gradeamento em ferro das respectivas sacadas.

Há em algumas cidades, ruas onde se destacam conjuntos preciosos dessas casas que, se não estão renovadas, também não estão adulteradas, como infelizmente por aqui acontece. Casas que falam da história de Goa e da cidade sobretudo porque, todos o sabemos, são as casas o mais precioso testemunho humanizado da vida de uma cidade ou aldeia. Estou a referir-me àquelas casas com alma, com história, não às que se copiam de revistas estrangeiras com o principal intuito de ostentar riqueza (que às vezes nem é tanta assim).

Mas voltando às casas de Goa. Muitas foram essas casas que pudemos observar nas ruas de Margão, de Pangim e outras, mas só numa tivemos o prazer de sermos recebidos pelos donos, o casal Pereira de Bragança, na povoação de Chandor.

Com uma gentileza de trato inexcedível, o Dr. Pereira de Bragança, goês de muitas gerações, e advogado por formação, pertencente à família Pereira de Bragança, fez questão de explicar que a casa esteve sempre na posse da família Pereira de Bragança, e que a sua geração era já a décima segunda. E embora as mudanças políticas, que em Goa se processaram, lhe tivessem tirado muitos dos rendimentos que alimentavam aquela grande casa, construída num tempo em que, na India, ainda havia vice-reis, eles, por um apego sem limites às raízes, continuavam a lutar por a manter intacta e bem conservada, como tivemos ocasião de admirar.

De facto, se a casa exteriormente é bela, o seu interior é mais belo ainda, com o seu chão de mármore ladrilhado brilhando impecável, a condizer com as portas envidraçadas, o seu valioso recheio constituído por preciosos móveis, candelabros e lustres, porcelanas, e a nota familiar de várias fotografias de membros da família que por ali passaram ao longo de muitas gerações, e cujo brasão está esculpido no espaldar dos cadeirões – o mais belo e imponente, como se compreenderá.

Já à saída, tivemos ocasião de, uma vez mais, observar do exterior este magnífico edifício, com as suas muitas sacadas de portas envidraçadas a abrir sobre a extensa faixa de jardim que o separa do largo da aldeia onde se ergue um cruzeiro e, ao fundo, a igreja, a fazer ângulo com a grande casa.

E demorando o olhar na comprida fachada de muitas portas envidraçadas, lembra-me dessa malograda Casa do Paço, do Couto de Cambeses, cuja fachadas, se não tinha o mesmo esplendor, tinha igualmente a dignidade, a alma, que o tempo empresta às grandes casas

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 18 – 1 – 1996

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Para além de sentimentos e impressões colhidos em Goa, várias foram também as sensações experimentadas. Essas a que, na circunstância, não se consegue fugir, a primeira das quais costuma ser a visual, se acaso se chega de dia a qualquer terra desconhecida. Essa mesma que se nos ofereceu, à chegada a Goa, onde imagens várias se nos depararam, ainda através da janela do avião, ávido o olhar, despertos os sentidos.

E mais tarde, quando já refeitos da viagem, pudemos partir à descoberta de Goa, foram de novo as sensações visuais que mais nos empolgaram, através do esplendor da flora goesa, tão rica, tão variada, tão fascinante. Apesar disso, a imagem dos coqueiros conseguiu impor-se à nossa atenção, dada a sua profusão: coqueiros na borda da estrada, perigosamente inclinados para a faixa de rodagem, coqueiros nos quintais murados, ao lado das típicas casas goesas de rés-do-chão.

Coqueiros que iríamos encontrar em todas as praias, em todos os jardins, pelas áleas – finas silhuetas no contraluz do rápido entardecer, essa hora em que as cores se tornam mais íntimas.

As cores de Goa, sensação visual intensa, nela recordo as cores dos saris, belíssimos, de fina seda. As cores dos frutos. A cor vermelha das vagens da pimenta a secar em mantas diante das casas, ao lado das flores, em especial a dos maciços de buganvílias polícromas e sumptuosas, pujantes como ainda não vi em Portugal, mesmo em tempo de intensa floração, quase anulando os hibiscos, escarlate ou brancos, e as acácias, mais discretas na sua floração amarela.

E os seus perfumes, aliados aos perfumes das especiarias que, na feira de Mapusa, vi vender. Especiarias naturais ou manuseadas no caril, esse condimento tão usado na cozinha indiana, cujo paladar intenso quase diria explosivo, nos deixava por vezes semi-sufocados.

E a sensação de calor, mais violenta nos meses que antecedem as chuvas, esse calor persistente, pesado, carregado de humidade, que dia e noite nos fustigava, mas cuja incomodidade conseguíamos vencer.

E o canto das aves, e muito especialmente o grito intenso das gralhas, rouco e cavo, persistente, mesmo de noite, a encher-nos o ouvido com seu tenaz protesto. Gralhas ladinas e astutas, a saltitar muito leves até ao extremo dos ramos.

E os sons do mar, manso e continuo, a estender-se pelas praias longas e limpas, quase desertas, orladas de coqueiros, onde o tempo parece correr mais devagar, sem lembranças nem preocupações, frente a esse mar tépido e pacífico.

E os rios quase silenciosos e lentos, tranquilos, cujas águas a ganância e a inconstância dos homens ainda não poluíram. Rios barrentos ou límpidos, rios de peixe, rios de pão.

Rios. Mar. Praia. Florestas. Casas pequenas. E em tudo uma sensação de paz, de tranquilidade, de confiança. Sensações estas aliadas à, de dia para dia mais forte impressão, certeza – posso dizer – de que éramos bem vindos, estimados e fraternalmente aceites.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 13 – 7 – 1995

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Foi depois de termos atravessado a cidade de Margão, a caminho do interior, que parámos para visitar um museu de arte sacra. Trata-se do Museu de Rachol, instalado num antigo seminário dos Jesuitas, e aberto há pouco tempo, graças à fundação Gulbenkian. É um belo conjunto de construções interligadas, de entre as quais sobressai a imponente igreja, a branquejar, tal como as restantes construções, numa elevação de terreno ajardinado, rodeada de arvoredo, e separada da estrada por um bonito gradeamento, igualmente branco.

Recebidos pelo seu conservador, um jovem entusiasta e já bom conhecedor de arte sacra, pudemos observar o precioso recheio deste museu, ouvir histórias, por vezes curiosas, das peripécias que algumas das peças sofreram desde que foram furtadas até, depois de recuperadas, serem incluídas no recheio do museu, onde estão em segurança.

Outras, quando foi possível reavê-las, tinham já sido mutiladas, como é o caso de uma cruz ali exposta, cujo Cristo em Ouro, bem como grande parte das ornamentações no mesmo metal, desapareceram, dela pouco mais restando do que a cruz, praticamente nua.

Um outro objecto para o qual foi chamada a nossa atenção, felizmente por motivos diferentes, foi uma cruz artisticamente trabalhada, onde se pode observar, como motivos ornamentais, elementos adotados da religião hindu, como por exemplo a imagem do sol, entre outros elementos próprios de objectos de culto naquela região.

Trata-se de peças que, como se imagina, eram executadas a pedido de portugueses, por artistas indianos, que nelas punham, como cunho pessoal, algum elemento da sua milenária civilização. Peças só aqui executadas, raras no mundo, e por isso mesmo admiradas por gente de várias latitudes.

Disso se colheu prova quando, em 1991, na Bélgica, se organizou a Europália, dedicada a Portugal, como muita gente se lembrará. E quem a visitou há de lembrar-se de ter observado, em Bruxelas, grupos de pessoas que esperavam pacientemente a sua vez de entrar num edifício, em cuja fachada se estendia uma faixa com letras suficientemente grandes para se verem de longe e onde se podia ler “De Goa a Lisboa”.

E de facto, quem ali entrasse não saia desiludido porque, desde objectos de pequenas dimensões até a um púlpito de talha artisticamente trabalhada, as preciosidades eram tantas e o deslumbramento acontecia.

Nesse museu de Rachol, ainda em fase incipiente, não há esse esplendor resultante da sumptuosa colecção que em Bruxelas foi possível reunir. Mas é um museu onde é já bem importante a coleção desses objectos de arte. Um museu que promete crescer para que o nome de Portugal não persista nessa parte do mundo, apenas como testemunho de uma época mas como forte laço dos afetos que as convulsões políticas não puderam desatar. Pelo menos até hoje.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 2 – 3 – 1995

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Li há tempos, não sei onde, um artigo onde se dizia contarem-se por centenas as invocações da Mãe de Jesus Cristo, que Maria se chamava.

Desde Nossa Senhora de Fátima ou de Lurdes, a Nossa Senhora do Ar ou dos Remédios, ou da Saúde, ou da Franqueira, muitas são, de facto, as invocações cujos nomes, no geral, andam ligados ao local do culto ou à intenção com que, pelo povo, e em tempos mais ou menos remotos, começou a ser invocada.

Na igreja de Cambeses, essa onde sempre tiveram lugar os momentos ligados à religião católica, mais importante da minha vida desde o baptizado, comunhão, crisma, casamento e outros baptizados, entre os quais o do meu primeiro neto, nessa igreja, dizia eu, a imagem da Virgem que mais me impressionou em tempos de meninice, era a da Senhora das Dores, envolta em cetins azuis e roxos, o rosto dolorido sobre o manto e, sobretudo, me impressionavam as sete espadas cravadas no seu coração, como símbolo da maior dor. Essa mesma imagem carregada de simbologia que, ainda hoje, em cada primeiro Domingo de Quaresma, na Procissão de Passos, tem um lugar de maior destaque na dramaturgia da Paixão que ali se efetua, numa tradição de séculos.

Tudo isto vem a propósito de uma imagem da Virgem que pude observar numa das igrejas da cidade da Velha Goa, a Basílica do Bom Jesus de que já aqui falei, essa mesma que guarda os restos mortais de S. Francisco Xavier.

Sob a invocação de Nossa Senhora da Esperança, essa imagem que assim despertou de modo particular a minha atenção, apresentava a particularidade de, em vez do tradicional manto imaginado pelos artistas ocidentais, ostentava a cabeça descoberta e o corpo envolto num belo sari que lhe cobria o ombro esquerdo deixando-lhe o braço direito livre para nele o Menino Jesus se sentar tranquilamente.

Imagem belíssima, exemplar perfeito da escultura religiosa indo-portuguesa, a qual se enquadra muito bem num rico altar de talha dourada barroca, esta de influência ocidental, à mistura com alguns elementos da arte indiana, como aliás acontece com muitos exemplares dessa mesma arte.

E porque me impressionou vivamente, não a esqueci, como terei esquecido algumas das muitas peças de arte religiosa cristã, onde o ocidente e o oriente se misturam, daí resultando uma beleza muito especial, rara no mundo da arte.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 19 – 1 – 1995


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Pela sua extensão e densidade populacional creio poder comparar-se a Índia com esse outro gigante que é a China. Mas, se sob o ponto de vista político, as diferenças são muito grandes, sob o ponto de vista religioso são maiores ainda, como se sabe.

E embora a forma de poder desses dois países seja diferente, talvez o oposto uma da outra (deixo isto ao cuidado dos estudiosos da política do nosso tempo, já que a minha formação académica é outra), é possível, a nível de rua, encontrar semelhanças, se me basear no que os meios de comunicação, acerca da Índia nos dão a conhecer, e nas informações que em Goa fui obtendo, e comparar esses elementos com a imagem que de Pequim e Xangai guardo, nos arquivos da memória.

E pensando num e noutro povo, pergunto-me se, realmente, o povo da Índia, que formiga pelas ruas das grandes cidades, aquele que dorme nas ruas, vive nas ruas, morre nas ruas, será mais livre que aquele que igualmente formigando pelas ruas de Pequim e Xangai, calado e ordeiro, segue a caminho de um emprego que mal lhe dá para a tigela do arroz. Povo que também dorme na rua, quando o calor é sufocante, já que grande parte das casas não tem o mínimo de condições para nelas se viver, mal dando para ali procurar refúgio quando, no inverno, a temperatura desce a muitos graus abaixo de zero.

Tornar o povo da China livre de se exprimir, atenuar as diferenças sociais, não é impossível. Pela força seria até praticável, e a esperança de ver esse povo livre, como o do Japão ou da Ilha Formosa, não é utopia.

Na Índia, porém, é difícil, senão impossível, atenuar as grandes diferenças sociais, as desigualdades tão acentuadas, porque a dominar este povo de civilização igualmente milenária que vive no respeito pela sua ancestralidade, os seus mitos, as suas antigas leis, está, não um governo com mãos de ferro, mas as suas próprias crenças, a sua profunda religiosidade.

Este povo que aceita voluntariamente continuar pobre, porque pobre nasceu e acredita que os seus males só em futuras reencarnações poderão ser atenuados.

Devo dizer, no entanto, que em Goa, apesar de ser Índia, não há essa miséria impressionante de Nova Deli ou Calcutá. Há pobreza, evidentemente. Miséria, não. E embora a presença de alguns pedintes em Goa seja um facto, parece, segundo me disseram, tratar-se, na quase totalidade, não de goeses, mas de indianos de outros estados, que para ali vêm de vez em quando.

Portanto há pobres, e os pobres de Goa aceitam, também eles, a sua pobreza quando a há, não com a confirmação forçada ou a revolta dos ocidentais, mas antes como algo de natural e inevitável, sobretudo se são hindus. Uma filosofia de vida que nós, ocidentais, não podemos entender em toda a sua extensão e profundidade, mas que temos obrigação de respeitar.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 13 – 4 – 1995

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Sempre que me demoro na casa de Cambeses, procuro com o olhar, num hábito que vem da meninice, o sopé do monte de Santo André, junto do qual corre o rio Este, ao mesmo tempo que tento ignorar a imagem de miséria física em que ele se tornou.

E foi precisamente num desses momentos que a memória me trouxe a imagem dos rios de Goa, com os quais este pobre rio Este não tem, aliás, a mínima semelhança: rios tranquilos, espraiando-se largamente junto à foz, no mar arábico, dos quais o mais estreito é o rio Sal, de que já aqui falei. Rio no entanto navegado por traineiras que dele fazem porto de abrigo. O primeiro rio que percorremos de lancha, contornando ilhotas de densa vegetação, afugentando gaivotas e olhando as margens, junto das quais dormitam barcos e se aninham casas pequenas, ao lado de medas de palha de arroz, medas semelhantes às de palha de centeio que antigamente por cá se viam junto às eiras.

Terras de arroz. Rio de peixe. Rio preguiçoso que quase todos os dias podia admirar, ali bem perto das nossas instalações. Ao contrário dos outros rios, lá mais para o norte, o primeiro dos quais o Zuari que muitas vezes atravessámos por comprida ponte de branco gradeamento. Rio largo, navegável, embora não tanto como o larguíssimo rio Mandovi, que desagua perto deste, ao lado da cidade de Pangim, sob o olhar atento da colina que “Altinho” se chama, zona residencial nobre da cidade, à qual tivemos ocasião, numa tarde, de subir, para de lá admirar a paisagem urbana que é Pangim e a larga superfície aquática do rio Mandovi junto à sua foz.

Rio que haveríamos de ter o prazer de navegar, num desses grandes barcos de recreio destinados a proporcionar aos turistas um passeio tranquilo, pelas calmas e extensas águas perto do mar, entre a cidade e a montanha, onde no alto se divisa o Forte dos Reis Magos e o farol construído pelos portugueses que, no tempo, foi o primeiro da Ásia. Farol agora desativado, substituído por um outro electrónico, mas que, apesar disso, continua conservado e respeitado, a branquejar lá no alto, como testemunho de lutas entre os homens e a natureza, lutas pela sobrevivência nas águas outrora navegadas por caravelas e naus,

Agora, sulcando a superfície lisa das águas, já não se divisam essas graciosas embarcações seiscentistas, as caravelas. Agora são os pesados e feios batelões, carregados de minério, os que mais sulcam o rio. Esse rio tranquilo, largo e suave. Esse doce Mandovi, como lhe chamam os poetas.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 2-1-1995

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Ainda tinha comigo, vivas, as imagens que, do Oriente trouxera, quando surgiu, inesperadamente, uma daquelas oportunidades que só em casos muito especiais se pode desperdiçar: uma viagem que tinha como finalidade, entre outras, a de assistir à inauguração do consulado de Portugal em Goa.
Efetuada a viagem, por ali nos demorámos cerca de duas semanas e, já de regresso, ao dispor-me a contar o que vira e observara, verifiquei que era difícil ordenar as imagens que comigo trouxera porque quase todas, senão todas, estavam envoltas por uma afectividade impossível de anular. Era como se tivesse visitado velhos parentes, que só de nome conhecesse, e daí resultasse escutar a inevitável voz do sangue. Essa voz quase sempre poderosa. Por esta razão só agora consigo falar dessa Goa aonde cheguei num propositado estado de quase ignorância.
Tudo o que de Goa sabia era o que na escola aprendera e o pouco que os meios de comunicação, de longe em longe, me vão dando a conhecer. Não procurei informar-me, não fiz leituras prévias, não me debrucei sobre compêndios, porque queria chegar a Goa nesse estado de quase inocência que costumo adotar quando visito uma terra pela primeira vez. E isto porque prefiro sobrepor o prazer da surpresa, da descoberta, ao prévio conhecimento, que sempre nos coloca numa posição de avaliadores entre o que sabemos e o que constatamos “in loco”.
Para mim, é muito mais aliciante receber, sem qualquer defesa, todas essas impressões e sensações, todo esse acumular de sentimentos que, na circunstância, geralmente se experimenta, e deste modo, simplesmente me surpreende maravilhar-me, indignar-me até, se for caso disso, razão porque ia ávida de conhecimento, expectante e receosa também. E um dos receios resultava precisamente de saber que nós, portugueses, durante séculos, fomos “os tais colonizadores, cruéis e déspotas, expulsos pela força” como alguns teimam em, deste modo, ver a nossa presença lá.
Por essa razão, estava mais ou menos preparada para enfrentar alguma antipatia e até animosidade por parte dos goeses. Mas cedo vi que estava enganada, porque muitas foram as provas em contrário, algumas das quais bastante curiosas e enternecedoras.
Provas de apreço, não só no hotel onde ficámos alojados, mas também nos convívios que, por vezes, nos eram proporcionados e até em plena rua. E, a propósito, lembro-me que, numa das cidades de Goa, ao negociar na rua, a compra de uma dessas bugigangas que sempre nos tentam, a vendedora, uma mulher de sari, perguntou-me, em inglês, se eu era italiana. Disse-lhe, quase a medo, bloqueada ainda pelas falsas ideias em mim conservadas, que era portuguesa, e logo o seu rosto se iluminou de um largo sorriso e exclamou: “Oh! Nice!”
É um caso pontual, evidentemente, que nada teria de significativo, se outros não tivesse presenciado ou vivido, e que talvez um dia aqui venha a relatar.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 15 – 9 – 1994

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Como já aqui se disse, em números anteriores, Cambeses, no tempo do Conde D. Henrique, era uma terra com alguns habitantes, os quais se ocupavam da agricultura e, possivelmente, viviam agrupados ao redor de uma pequena igreja, a qual seria da invocação de Santiago, visto que, num documento de 1085, esta terra aparece como S. Iacobo d. Cambeses, o que está de acordo com a opinião de conceituados historiadores, segundo a qual dois caminhos que a Compostela conduziam passavam por aqui, e iam desembocar nos caminhos principais.

Depois houve a instituição de couto de Nossa Senhora da Sé de Braga e a criação do concelho municipal, como se sabe. E porque os reis se foram sucedendo, houve transformações de vária ordem, e as funções iniciais deste couto sofreram profunda alteração. Consequentemente, e ao contrário do que aconteceu com outros coutos da Igreja, Cambeses tornou-se num couto de homiziados, abrigo de gente de outras paragens, gente que era acusada de ter infringido a lei. Alguns desses indivíduos, que no couto se acolhiam, acabaram por partir, outros aqui morreram e outros ainda (talvez poucos) aqui batizaram os filhos que foram nascendo e que aqui se terão fixado, redimidos dos crimes cometidos.

Mas a população inicial, essa que já aqui estava do tempo de D. Afonso Henriques, e tinha adotado um nome para a sua terra, que era S. Tiago de Cambeses, era gente ordeira, respeitadora das leis que então vigoravam, cultivava as terras que, em rigor, não lhe pertenciam, entregando ao senhorio uma parte das colheitas, segundo as leis da época.

Os séculos foram-se sucedendo. Sete ao todo. O couto foi extinto e o concelho municipal também. Consequência também de várias alterações de ordem política e social. Mas a vida continuou, e como sempre acontece, houve épocas de abastança e de miséria também.

Mas deixemos esse assunto e voltemos à história de Cambeses: após a extinção do Couto, o nome de Couto de Cambeses desapareceu nos documentos oficiais, para só ficar o nome de Cambeses, o que não impediu que esta freguesia continuasse a ser nomeada, nas redondezas, por “Couto” e raramente por Cambeses.

Falando neste assunto com quem, por formação académica, se ocupa a estudar comportamentos sociais deste género, e tendo-se sugerido se o motivo de tal atitude seria por a palavra “Couto” ser um a palavra mais curta que Cambeses e, consequentemente, mais fácil de pronunciar, essa opinião foi contrariada com o exemplo do que acontece em relação a outras terras que foram coutos e hoje já não são lembrados como tal. É o caso do couto de Arentim, que existia ainda no século XIX.

Portanto, pondo de parte esta hipótese, quase somos forçados a admitir que o nome de “Couto” persiste mais forte que o de Cambeses, porque este couto foi um couto poderoso. E, porque poderoso, protegeu muita gente, homens e mulheres, que vieram de fora, às vezes de muito longe. Uns seriam autores de crimes de alguma gravidade, outros nem isso. Mas as leis daquele tempo eram severas e as penas, por vezes, cruelmente aplicadas. Daí o medo, a fuga e o refúgio num couto como este, o que não acontecia com Arentim porque esse couto não era de homiziados, embora fosse confinante, em parte, com o de Cambeses.

Mas voltando aos seus habitantes: estes embora alheios às leis que criaram este sistema administrativo, tinam, ao contrário dos foragidos, os seus privilégios e obrigações, que nada teriam a ver com as obrigações impostas aos homiziados, porque no geral eram, como já se disse, pessoas ordeiras, que cultivavam a terra e dela prestavam contas ao senhorio.

Sabemos que a tradição pesa muito. E a tradição do nome couto ainda não se extinguiu na memória colectiva. Daí que, pelas redondezas, se nomeie, ainda hoje, esta terra por “Couto”. E quer alguns dos atuais habitantes gostem ou não, e prefiram dizer que são de Cambeses, o que está absolutamente correto, visto ser este o nome oficial, não se pode, por muito que isso pese, destruir a memória do Couto, pelo que temos de aceitar que esta freguesia seja assim nomeada.

O que não podemos admitir, é que isso nos envergonhe, antes pelo contrário.


terça-feira, 8 de novembro de 2016

Nítidas, persistentes, agora, muitas das imagens que de Goa trouxe comigo, pelo que forçosamente sobre elas irei escrever. Não um relato linear, minucioso, da viagem, mas antes impressões colhidas ao acaso e que a memória foi guardando. Imagens desordenadas que surgem por vezes de modo imprevisto, à medida que tento reconstruir factos ou simples impressões sobre o que me foi dado observar.

E Goa, onde chegámos ao fim da manhã, logo nos ofereceu, ao olhar, um conjunto de imagens que, no entanto, a fadiga não permitiu que apreciássemos devidamente. Fadiga agravada pelo calor pesado, saturado de humidade e pela longa espera que tivemos de suportar nas precárias instalações alfandegárias, perdidos em arredada burocracia.

Neste estado de espírito, cada vez mais impacientes e irritadiços, só ao fim de longuíssima hora pudemos transpor o último umbral do edifício alfandegário. E dominados por essa indisposição, a que se juntava a falta de sono, não conseguíamos corresponder como devíamos aos primeiros sorrisos goeses que, à saída do edifício nos aguardavam, levando-nos a quase ignorar o colorido dos saris e a gentileza do gesto com que nos ofereciam colares de flores, a troco de escassas rupias.

Portanto foi com alívio que, já instalados no autocarro, o sentimos pôr-se em marcha e seguir por uma estrada estreita, ladeada por extensas planícies cobertas de restolho, de secura. Uma paisagem de acordo com o nosso incómodo humor, a qual mal olhávamos da janela do autocarro, viatura obsoleta e ronceira, sem ar condicionado nem qualquer outro tipo de refrigeração, que tivemos de suportar ao longo de uma hora de viagem, atravessando matas de coqueiros, aldeias e a cidade de Margão, na qual mal reparámos, apesar da animação do seu mercado ao ar livre, repleto de frutas e legumes. Uma paisagem penosa que nem a gentileza dos sorrisos goeses, nem a curiosidade pela paisagem que lentamente íamos atravessando, nem a afabilidade do pessoal de transportes tinha conseguido amenizar. Uma viagem desgastante, que por vezes nos remetia para uma misericordiosa sonolência.

De súbito, porém, tudo se transformou como por encanto. Algo de imprevisível, feérico, se nos oferecia na visão esplendorosa dos maciços polícromos de buganvílias que, à entrada do extenso recinto, se estendiam pelos muros e vedações que delimitavam o espaço do hotel (o Leela Beach) onde nos aguardavam.

Era o oásis, quase irreal, que de imediato parecia fazer-nos esquecer as agruras da longa viagem que continuou ainda, por comprida área florida, ladeada de canteiros viçosos até que o autocarro se deteve num largo, onde sobressaíam exóticas palmeiras de leque, idênticas às que, em Singapura, tínhamos podido admirar.

E quando nos foi dado escutar, nesse pequeno largo, a água cantante dos repuxos do tanque circular, pintado de cor de rosa como as fachadas dos edifícios do complexo hoteleiro, e pudemos, enfim, repousar nos amplos salões da receção e deixámos que o olhar vagueasse pela vegetação, através das largas janelas e avistámos as águas cintilantes de uma nesga de mar, então sim, acreditámos que tinha valido a pena tanta incomodidade.

Aquele era realmente o oásis desejado. Real, acolhedor, fascinante.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 22 – 9 – 1994

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Foi na cidade histórica de Velha Goa que, tal como me havia já acontecido em Malaca, me lembrei, de súbito, de Cambeses.

Não pela paisagem, evidentemente, nem pelas pessoas, indianos na quase totalidade, que circulavam pelos espaços verdes que abundam entre as grandiosas igrejas desta antiga cidade, outrora capital de Goa, e hoje apenas, e muito é, uma cidade museu.

Lembrei-me de Cambeses porque a primeira igreja que nos foi dado visitar foi, precisamente, a Basílica do Bom Jesus. E lembrei-me apenas por causa do nome, porque no interior não encontrei, como na igreja de S. Pedro, em Malaca, os andores com o senhor dos Passos e a Senhora das Dores. Nesta igreja, construída sob a invocação do Bom Jesus, um outro culto nasceu e se instalou de tal modo no coração dos goeses que não pode ficar ignorado. O culto de S. Francisco Xavier que, como se sabe, morreu longe dali, e mais tarde foi trazido incorrupto para a velha Goa, assim de mantendo ao longo dos anos, até aos dias de hoje, repousando na sua urna de vidro com o único braço, o esquerdo, pousado sobre o peito, já que o outro, o direito, foi decepado e enviado a Roma, para que não se duvidasse da sua incorruptibilidade, sinónimo de santidade, numa altura em que o povo goês o tinha já canonizado e, fervorosamente, venerava os seus restos mortais.

Veneração que ainda hoje continua intensa, viva, tal como em Malaca, terra onde S. Francisco Xavier, homem de extraordinária energia, se devotou à cristianização dos povos orientais. Um santo que possuía tal poder de persuasão, que Malaca, cidade do vício e do crime, se deixou disciplinar pela força da sua palavra.

Como nota curiosa e exemplo vivo da devoção a S. Francisco Xavier, são muitos os Franciscos que podemos encontrar em Goa, nome aí tão vulgar como era, até há poucos anos, o nome de Maria em Portugal.

Disseram-nos, ainda, que é de tal modo profunda a devoção que os goeses têm por S. Francisco Xavier, que até muitos goeses ligados ancestralmente ao hinduísmo, lhe prestam o seu culto. Não sei até que ponto isto pode ser verdade, sei, isso sim, que muitos eram os indianos, famílias inteiras com crianças, que ali estavam, no interior do templo, demorando-se diante do altar onde o túmulo do apóstolo se encontra.

Aliás, nenhum outro motivo deveria haver para os trazer até ali, porque a cidade de Velha Goa, hoje cidade museu, com as suas grandes igrejas e os seus espaços verdes, onde não há casas comerciais nem de habitação, não tem nenhum outro atractivo para lhes oferecer, a não ser a devoção ou a atração que o mistério da sua incorruptibilidade representa.


Publicada no Jornal de Barcelos de 24 – 11 – 1994

sábado, 5 de novembro de 2016

Estive há pouco numa vila raiana, antiga fortificação militar, onde assisti a um simpósio que podia ser um simpósio igual a muitos que, nesta especialidade ou naquela, sempre vão acontecendo pelo país fora.

Mas não era um simpósio igual a tantos, e a diferença estava precisamente na VOZ. Voz que, naqueles três dias, que foi o tempo que o simpósio durou, se fazia ouvir para lá das palavras. Não era a voz das pedras gastas pelos muitos passos que as percorreram, nem a voz dos que, em defesa da vila, ou melhor, da pátria, ali tombaram.

Naquelas horas de estudo e de reflexão, a VOZ que se fazia ouvir, muito forte, muito pura, era simplesmente o apelo das raízes. Não é produto de retórica nem simples devaneio, isto que aqui se afirma, porque a VOZ estava lá, real, nas vozes dos que, serenamente, falavam do amor à terra. Amor dito com palavras e comprovado com factos.

Estava no empenho de uns quantos, decididos a que a vila cresça, mas de forma harmoniosa, sem agressões no seu património arquitectónico. Decididos a que o concelho progrida economicamente mas longe dessas ambições e sofreguidões que destroem os bens essenciais à vida, como o é a água, para não falar noutros. Decididos a que o concelho se modernize sem prejuízo da sua identidade cultural.

E sei que o vão conseguir (e muito conseguiram já) porque estão tomados de amor à sua terra, obedientes à voz do sangue, presos pelas raízes que, naquele chão pedregoso se afundam. E embora poucos, eram muitos, porque fortes e esclarecidos.

E julgo não usar de indiscrição se, para melhor exemplificar, identificar alguns deles, dos quais destaco o presidente da edilidade, homem dali, da terra beirã de seus avós, ali nascido e embora mais tarde radicado em Lisboa, tudo lá deixou para, na sua terra, melhor lutar por ela.

Presidente eleito e reeleito sucessivamente, não porque é deste partido ou daquele, mas porque é o Homem que as populações idealizaram e querem. Homem que sobe, incansavelmente, escadas dos ministérios de Lisboa, que percorre corredores, que espera à porta dos gabinetes e, como não se resigna a regressar de mãos vazias, volta daí a pouco a atravessar o Terreiro do Paço, a subir escadas, a esperar à porta dos gabinetes, e tudo o mais é secundário para ele.

Um outro homem digno de menção era alguém que do Brasil tinha vindo, propositadamente, para ouvir falar da terra de onde partira menino ainda, ele que, mesmo longe, jamais deixara de se documentar sobre a sua terra, o que lhe permitira já escrever dois livros sobre a sua história. E falava em doar a sua biblioteca, que julgo valiosa, e falava em Casa de Cultura, em animação cultural dentro daquelas históricas muralhas.

Igual entusiasmo se via na voz do ilustre compositor, professor de música e padre, que fez questão de nos levar a ouvir música da sua aldeia “a aldeia mais pequena de Portugal”, segundo disse. E havia o exemplo espantoso daquele jovem casal, ele arquitecto e ela professora de inglês que, deixando Lisboa onde nasceram, cresceram e estudaram, se vieram instalar naquela terra que era a dos seus antepassados, para darem uma nova vida à velha quinta de família, até aí semiadormecida no tempo.

Não se julgue que é romantismo ou simples devaneio o que ficou dito. É uma realidade que tive o privilégio de constatar numa terra beirã que Lisboa não consegue esquecer porque ela está lá constantemente a bater-lhe à porta, a acordá-la, essa terra corajosa. Terra onde a natureza é madrasta se a compararmos com a nossa, esta terra barcelense, terra humosa, de verde e de sol, terra a que Cambeses pertence.

E sobre este assunto muito mais se poderia dizer. Mas talvez o que foi dito seja já suficiente para que alguns sobre o assunto se demorem e possam reflectir sobre os valores que aqui se defendem, se ainda estão suficientemente libertos para o fazerem, evidentemente.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 10 – 12 – 1992

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Não tarda que uma nova época balnear surja e, com ela, a animação das praias, com carros a chegarem, logo de manhã, pelas estradas que à beira-mar vão dar. É o bulício, o ruido dos motores e claxons, a multidão ansiosa e alegre ao começo da manhã, fatigada e impaciente nas filas, à hora do regresso.

Assim em todas as praias. E um pouco mais nessa que foi a praia do meu fascínio em tempo de infância: a Póvoa de Varzim. Praia de mais fácil acesso para quem, naquele tempo, vivendo em Cambeses, podia utilizar o comboio até lá, sem incomodidades nem preocupações de maior.

Dias que a memória afectiva guardou, sem outros que se lhe pudessem comparar em beleza: a beleza desse mar das marés vivas de agosto, a arremeter pelo areal, ameaçador, poderoso. Um mar até hoje inalterável, e que é o oposto desse outro que, lá tão longe, conheci: o mar da China. Um mar calmo na baía de Aberdeen, um mar apetecido, não fosse a ameaça de tubarões, apesar da rede defensiva a todo o comprimento da praia, protecção que não deixa tranquilo quem queira aventurar-se nessas águas tépidas, irmãs dessas outras que se tem de navegar, se estando em Hong Kong e se deseja conhecer Macau.

O “jet-foil” que faz a ligação entre os dois territórios é rápido, seguro e tão confortável como o interior de um avião. E o mar é calmo e tranquilo para quem o olha: um mar muito belo, de um verde tenro, a condizer, não só com as ilhotas desertas que se vão encontrando ao longo do percurso, mas também com as montanhas costeiras do território chinês, cobertas de vegetação rasteira, montanhas poderosas que, no seu conjunto, tornariam a paisagem austera, se não fosse o verde húmido, acetinado, que as reveste, desde os cumes até à linha de água.

Águas verdes, da cor do jade, num mar sempre igual, que só se altera na cor, com a aproximação de Macau ou, mais propriamente, com a foz do Rio das Pérolas, cujas águas barrentas dão outra tonalidade ao mar que se vai navegando.

Mesmo que não venha a propósito, recordo as margens desse mesmo rio, admiradas mais tarde, de perto, quando percorríamos a cidade.

Esse rio que, em parte, separa a cidade das terras da velha China continental, terras agressivamente defendidas por arame farpado e rede, a desencorajar qualquer desembarque ou fuga ou simples escapadela para, em Macau, dar satisfação a um vício tão do agrado dos chineses: o jogo de azar. Vício que na China não é permitido satisfazer, nem tão pouco em Hong Kong, a não ser nos jogos de apostas, nos hipódromos, tão do agrado dos ingleses, como é sabido.

A sedução da roleta, porém, é, para muitos mais forte, porque imediata. Por isso são os chineses de Hong Kong que vão a Macau, atraídos pelos casinos, cujo movimento, disseram-nos, é comparável a Monte Carlo ou Las Vegas. Não sei se há exagero nesta afirmação. O que sei é que o movimento é intenso, daqueles que ali chegam para arriscar a sorte, e quantas vezes dar motivo a histórias dramáticas, como essas que, no tempo da minha infância, ouvia contar acerca dos casinos. Histórias de fortunas ganhas numa noite e logo esbanjadas. Histórias de fortunas herdadas e definitivamente perdidas à roleta, fortunas desbaratadas, com seu cortejo de dramas familiares.

E hoje?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 24 – 3 – 1994

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Foi lá para o sul da Malásia, no outro lado do Mundo, que de súbito senti saudades de Cambeses e, por momentos, a memória afectiva trouxe até mim cenários conhecidos e, sobrepondo-se, o “Dia de Passos”, a procissão, as imagens de Jesus e Maria dos andores: toda a dramaturgia da Paixão, num ritual de séculos.

Vindos da capital da Malásia, Kuala Lumpur, tínhamos há pouco chegado à cidade de Malaca e, seduzidos pela História, logo procurámos tomar contacto com as ruas de casas antigas, o Museu Memorial de Malaca, onde a presença portuguesa está testemunhada em documentos e imagens; tínhamo-nos detido junto à porta de Santiago para, de seguida, subirmos à colina onde S. Francisco Xavier viveu os últimos anos da sua vida.

Após um curto deambular e visita às ruinas da igreja de S. Paulo, ao lado da qual se ergue a estátua de S. Francisco Xavier, foi a vez de descermos em direcção à igreja de S. Pedro, essa igreja onde, de súbito, senti saudades de Cambeses. Trata-se de uma igreja muito bem conservada, cuja fachada, curiosamente, está pintada de verde-claro.

Já no interior, detivemo-nos por momentos junto da pia baptismal em granito, a lembrar um pouco aquela onde, em Cambeses, fui baptizada. Depois seguimos ao longo da ampla nave central, admirando os altares onde S. José, Santo António, O Arcanjo Gabriel e outros são venerados e, de súbito, ausentei-me desta terra malaia para ter, diante dos olhos da memória afectiva, Cambeses em “Dia de Passos”.

Foi um encontro inesperado esse, com as imagens do “Senhos dos Passos”, a “Senhora das Dores”, numa das capelas laterais, imagens colocadas em andores, semelhantes aos que, no primeiro domingo de Quaresma, saem da Igreja Matriz em solene procissão quaresmal. Imagens representativas de um mesmo catolicismo e, no entanto, diferentes como a expressão de arte, na Arte que lhes deu origem.

Era uma imagem do Senhor dos Passos em tamanho natural, tal como a existente na capela do Bom Jesus, vestida, não de veludo roxo mas de veludo púrpura, a cor da dignidade real. Tinha a mesma expressão sofredora sob o peso da enorme cruz de madeira, joelho dobrado pela exaustão a que o sofrimento levou.

As feições, porém, eram as de um homem oriental, de pele muito morena e olhos negros, diferentes dos da gente do ocidente, tais como o rosto da Senhora, um rosto de cor azeitonado, como o das mulheres malaias.

Mas não foi esta visão do artista que mais me impressionou. Impressionou-me sim, que este culto do Senhor dos Passos, que o mesmo é dizer do Senhor da Cruz, tenha resistido às viragens políticas, aos conflitos bélicos, às invasões de dominadores cuja religião oficial não era a católica, e continue ainda hoje, num país onde a religião oficial é a islâmica.

Por isso, ao sentir saudades de Cambeses, não pude deixar de me maravilhar também, perante este testemunho devocional, traduzido na Procissão que os andores me levaram a imaginar, não ao longo de um percurso difícil de percorrer como é o de Cambeses, mas antes pelas ruas planas de Malaca, à beira do mar, longe de Lisboa, onde a primeira procissão dos Passos, ao que se julga saber, teve lugar em 1587, dramaturgia da Paixão intensamente vivida pelos lisboetas, tal como ainda hoje o é pelos habitantes de Cambeses, tal como será pelos católicos de Malaca, seguidores de um catolicismo que os portugueses lhes levaram nesse longínquo tempo das caravelas, por vontade de El-Rei de Portugal.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 3 - 2- 1994

Reta Final


terça-feira, 1 de novembro de 2016

Os Chapéus de Palha de Cambeses - Separata da “Barcelos – Revista” de 1991

Situada no extremo do concelho de Barcelos, é Cambeses limitada por freguesias de Braga e de Vila Nova de Famalicão.

É terra airosa e verdejante que, por encostas onduladas, desce qual cascata, ensolarada e colorida, até ao vale do Este, para de novo se erguer pela encosta fronteira, dominada pelo monte de Santo André.

O casario, quase todo situado na margem direita do rio Este, espalha-se por muitos e variados lugares, cuja toponímia nos oferece, ora nomes de certo modo elucidativos, como Carvalhal, Souto-Covo, Bouçó, Pomarinho, Azevinhos, Outeiro, ora nos brinda com nomes por vezes insólitos, como Brasil e Peneirada, sendo de destacar este último, como o lugar mais populoso da freguesia.

É sobretudo neste lugar, cujas razões para tal nome não podemos conhecer, que se manufacturavam e manufacturam ainda, em parte, os chapéus de palha de que iremos falar, e cuja matéria-prima é a palha de centeio, cereal este cultivado nas terras secas, onde, noutras eras se cultivava o milho-alvo, uma vez que, nesta muito antiga povoação de Cambeses, os seus habitantes sempre foram agricultores.

E a propósito da sua antiguidade, não queria deixar de referir que, nos primórdios da nossa nacionalidade, e por vontade política dos grandes de então, foi Cambeses anexada à Sé de Braga e, consequentemente, transformada num couto, um dos oito coutos que, no termo de Braga, tiveram lugar.

Aos habitantes deste couto foram concedidos benefícios e, consequentemente, exigidas obrigações, situações a que se acomodaram, assim vivendo séculos. Por lameiros e por encostas semeadas de carvalhais e soutos apascentavam os seus rebanhos, colhiam os seus frutos. Depois vieram os pinheiros e, dado o seu rápido crescimento, tornou-se mais rentável esta produção florestal, pelo que cedo, os vetustos carvalhos e castanheiros deram lugar a densos pinhais (daí o adágio: “velhacos e pinhais cada vez há mais”).

Mas não foi só nas encostas arborizadas que a transformação aconteceu. O aspeto dos campos também se foi modificando quando o centeio destronou o milho-alvo, rei e senhor das terras de encosta, para mais tarde, e juntamente com o milho dos nossos dias, dar origem à alimentícia broa caseira, de mistura, sobretudo.

Mas falar em centeio não é apenas falar em pão delicioso, escuro e nutritivo. Falar em centeio é também evocar as altas cearas de longos caules verde acinzentado, cearas que, nas tardes de maio ondulavam docemente aos ventos da primavera, em campos de encosta orlados por macieiras e cerejeiras bravas.

Falar em centeio é falar das alegres e penosas malhadas de julho, sob o ardor do sol estival, o corpo crivado de sarugas agressivas. Falar em centeio é falar em palha que os bois calcavam nas largas eiras, para a quebrar, e que depois, acomodada em rotundas medas, encimadas pelo capucho de palha e pelo ramo do fim de festa das malhadas, que ali aguardava a sua vez de acudir à alimentação do gado bovino, em tempos de escassez de pastagens.

Falar de centeio é falar de colmeiros de hastes longas que, acomodados em lugar enxuto, esperavam a sua vez de renovarem os gastos colchões de palha das casas de família, ou então de se tornarem abrigo protector, defendendo do áspero sol estival.

Portanto falar em centeio é falar em chapéus de palha, imprescindíveis para do sol proteger quem, sob os seus raios tem de trabalhar, nas duras tarefas do campo.

Não sabemos quem foi a primeira mulher que teceu, com seus laboriosos dedos, as primeiras braças de fita, utilizando as palheiras aparadas de nós, nem sabemos quem, com essa fita, fez o primeiro chapéu. Sabemos apenas que se trata de uma forma de artesanato quase tão antiga como o cultivo do centeio nesta freguesia, e que em Peneirada e Souto-Covo, lugares de denso povoado, eram numerosas as mulheres que entrançavam longos metros de fita de palha, tal como ainda hoje algumas o fazem, e com ela confeccionavam os chapéus que depois vendiam.

Mas, até que o chapéu estivesse pronto a ser usado, eram várias as tarefas a que esta forma de artesanato obrigava, sendo, como é óbvio, necessário, antes de mais, a obtenção da matéria-prima: - a palha do centeio. Assim, lá iam elas pela porta dos lavradores, regatear o preço de um colmeiro, se a fartura desta palha era evidente, ou suplicar a venda, se esta escasseava.

Feito o negócio, era o grosso colmeiro carregado à cabeça pela compradora e instalado em casa, ao abrigo das intempéries. Dele se ia retirando pequenas porções de palha, conforme as necessidades. E assim, haste por haste, esta traçada em palheiras de comprimento diverso, ou seja, do tamanho máximo entre dois nós de caule, desaproveitada que era a parte mais grossa, junto ao pé, e a parte mais fina, junto da espiga.

Obtido o molho de palhas de tamanho desigual, e com cerca de dez centímetros de diâmetro, era este posto a demolhar. Logo que as palhas se apresentavam macias e flexíveis, tiravam-se da água e punham-se a escorrer. Seguidamente a artesã enrolava-lhes uma faixa de pano grosso para se proteger da humidade e, colocando-as sob o braço esquerdo, ficava com as mãos livres para manufacturar metros e metros de fita entrançada, que ia dependurando no braço direito. Fita de seis palhas, de oito e até de doze, conforme a necessidade. E assim, minuto após minuto, lá ia crescendo a grande meada que, pendurada do braço, quase rentava o chão. Parada ou a andar, sempre os seus dedos se moviam com uma velocidade incrível, sem uma falha, uma distracção, para que a fita saísse rectilínea, de bordos impecáveis.

E quando a quantidade de voltas da longa meada era já intransportável para o braço que a sustinha, dava-se por terminada aquela tarefa e iniciava-se outra meada. Era então que os menos hábeis da família, geralmente crianças, de tesoura em punho, se lançavam nos acabamentos, ou seja, “tosquiavam” a fita, cortando as pontas das palhas entrançadas com todo o cuidado.

Depois era essa fita mergulhada em água para que, humedecida, se tornasse maleável, e iniciava-se então a confecção do chapéu, tarefa esta que só os mais hábeis executavam, pois exigia uma especial atenção, para que a copa saísse na medida justa, a aba direita, oval ou redonda, e os pontos da grossa linha de algodão muito certos, bem rematados. E assim, munidas de grossa agulha e fio de algodão, apoiando o trabalho numa mesa apropriada, lá iam cozendo os primeiros decímetros de fita, dando forma a uma copa redonda ou oval, de acordo com a qualidade da palha e o modelo que afeiçoavam constantemente, com os dedos ágeis, e com o auxílio de um maço de madeira, mais ou menos do tamanho da copa alta de alguns modelos de chapéu.

Quando a aba atingia a largura pretendida, era esta em alguns casos, orlada com um bico feito de fina trança de quatro palhas. Um bico simples ou elaborado em ziguezague, o que dava um aspeto rendilhado ao chapéu. Os chapéus mais antigos que se conhecem eram de copa alta, ligeiramente pontiaguda, e aba redonda. Depois surgiram outros de copa oval, suficientemente alta para se enterrar bem na cabeça, e de aba não muito grande e, evidentemente, oval, muito utilizados nos trabalhos agrícolas. Estes chapéus eram de palha mais grossa, trança geralmente de seis palhas.

Posteriormente surgiu um modelo de copa baixa e larga, aba redonda, enfeitada com uma fita de seda, e que era possivelmente imitação das capelines que as elegantes dos anos quarenta ainda usavam nas cidades. Estes chapéus eram de palha fina e de fino entrançado, de dez ou doze palheiras. Havia, nessa altura, os chapéus de palha ferrã que, como se sabe, é a palha, neste caso de centeio, ceifada antes de estar completamente espigada. Uma palha muito fina e branca, da qual se faziam chapéus mais elaborados, para serem utilizados fora do trabalho e quando o sol assim o exigia. Eram chapéus bonitos e delicados, branqueados em caixas fechadas, com o auxílio do fumo de enxofre, que ardia, devidamente acautelado, dentro da caixa, ao lado dos chapéus.

Havia ainda os “rambóias”, chapéus de entrançado em várias cores, e onde o vermelho, azul, amarelo, verde, etc., se cruzavam em fita, geralmente de palha menos fina e de seis palheiras, que eram tingidas em púcaros fervendo nas rústicas lareiras, as anilinas compradas numa qualquer drogaria de Braga ou Barcelos, e onde as palhas, devidamente aparadas, eram mergulhadas, para se obter assim a cor desejada.

Estes chapéus eram de copa redonda, não muito alta, e aba arqueada e pequena, chapéus alegres, a que o nome “rambóia” se ajustava muito bem. Com esta forma, mas em palha de cor natural, apareceu outro modelo, mais tarde, e que ainda hoje se usa, levando, geralmente, uma fita de seda azul-escura na copa.

Cada chapéu, e de acordo com o modelo, levava largos metros de fita de palha, que os dedos dessas mulheres agilmente coziam. E digo ”mulheres” porque esta era uma tarefa exclusivamente feminina. Se acaso algum homem, porque desocupado, se atrevesse a entrançar umas braçadas de fita, era de imediato objecto de troça dos seus conterrâneos.

Era, na sua maioria, gente das classes menos favorecidas, vivendo em casas de pedra solta e tabuado, quando não era só de tábuas, a casa, que mal os defendia da chuva e do frio.

De facto, as mulheres e filhas dos lavradores, as criadas das casas de lavoura e as jornaleiras diárias, não faziam fita nem cosiam chapéus, e olhavam de modo que poderíamos classificar de depreciativo, essas mulheres que se mantinham “de costas direitas”, embora os seus dedos laboriosos se mantivessem ativos todo o dia e parte da noite, em longos serões à escassa luz do petróleo.

Eram mulheres que raramente trabalhavam na lavoura, ocupadas dia e noite numa tarefa que seria fastidiosa se não se tratasse de uma ocupação que lhes permitia estarem sentadas ou passearem-se pelos caminhos da freguesia, atentas ao mais insignificante acontecimento. De um modo geral, qualquer facto era suficiente para lhes encher uma tarde de conversa, à fresca, nas tardes calmosas, à hora em que as outras se curvavam de suor pingante, para o chão humoso e exigente. Eram mulheres que revelavam um modo especial de pensar e de agir. Assim, lá iam pelos caminhos, passo lento e dedos ligeiros, olhos e ouvidos atentos, levando consigo, sob um braço, o molho de palhas húmidas e aparadas, a que já nos referimos, e do qual retiravam, palheira após palheira, toda a matéria prima de que necessitavam. E enquanto no outro braço, a longa meada de fita entrançada se tornava cada vez mais volumosa, o molho de palha ia diminuindo até se extinguir.

Numa comunidade de agricultores como Cambeses, não admira pois que as “mulheres da “fita” não gozassem de muita consideração. Elas eram diferentes das que, de estrelas a estrelas, andavam numa roda viva, da cozinha para as hortas e cortes, e dali para os campos. E estas, porque mais bem alimentadas, ginasticadas, ágeis e sempre atarefadas, não viam com bons olhos essas mulheres “da bisbilhotice e da preguiça” diziam, esquecendo-se que grande parte delas eram mulheres débeis, porque mal alimentadas. Mulheres bisbilhoteiras, não o eram com certeza na sua totalidade. Mas eram, pode-se afirmar, a gente mais pobre da freguesia, já que a quantia paga por cada metro de fita manufaturada era irrisória.

Para comercializar os chapéus, eram estes transportados em sacos enormes, pelo combóio que no apeadeiro parava, e os recebia no forgão, como se se tratasse de excedentes de bagagem de um qualquer passageiro, que neste caso era a mulher que os comercializava.

Depois houve alguém, na freguesia, que chamou a si e de forma organizada, este tipo de negócio, adquirindo os chapéus manufacturados durante o inverno, e que ia armazenando, para no verão os vender pelas feiras e casas comerciais. Mais tarde comprou uma máquina apropriada e os chapéus deixaram de ser cosidos à mão.

Deixou assim de ser puro artesanato, uma vez que a máquina passou a ser utilizada. Outros modelos vieram. Passou-se a fazer sacos de praia, seiras, etc., e a comercialização aumentou, ao mesmo tempo que esta forma de artesanato se tornou sofisticada, menos pura.

No entanto a fita de palha, essa continua a entrançar-se em Cambeses, manualmente, tal como há cinquenta anos, sessenta e muitos mais talvez. Possivelmente há mais de cem, como ainda há bem pouco tempo um quase nonagenário desta freguesia afiançava.

Porque os chapéus de palha de centeio, nesta era dos plásticos, não puderam ainda ser substituídos com total êxito, por qualquer matéria prima sintética, acreditamos que esta forma de artesanato, poderá continuar a ser minimamente rentável para quem dela se queira ocupar.

Mas tirando as mais idosas, que ainda em Cambeses fazem “fita”, depois delas será difícil encontrar quem pela fita de palha se interesse, pois que da gente nova, e até de meia-idade, poucos serão os que desta forma de artesanato se ocupam agora, dada a sua falta de rentabilidade. Preferem ocupar-se de outras profissões mais rentáveis, como é óbvio que as há, felizmente para eles. Isto sob o ponto de vista económico, evidentemente.



In Barcelos – Revista, 2ª Série - 1991- Nº 2. Director Sebastião Matos. Barcelos, Câmara Municipal, págs. 223 – 229.