quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Recordar a Festa das Cruzes através das imagens de uma vivência anual de poucas horas seria quase impossível sem o recurso à memória afectiva da maior parte dos acontecimentos e a maior parte dos acontecimentos teria sido varrida da minha memória, se não houvesse o regresso, embora fugaz, ao espaço percorrido quando era criança ainda. Espaço que é, todo ele, tumulto de gentes, luzes, sensações que transcendem a minha capacidade de atenção num cenário de carros de bois, pipas de vinho, panos das tendas esvoaçando, mulheres de lenços coloridos, homens de varapau. Imagens que se desdobram diante dos meus olhos sempre que volto a ter nove anos e me deixo envolver pelo tumultuar da Festa. Imagens plasticamente magníficas, as quais os meus sentidos refazem numa antiga intimidade com sons, cheiros, e aquela poeira luminosa rodopiando no vasto campo.

Imagens retomadas com uma espécie de nostalgia que me devolve a ingenuidade daqueles tempos felizes e simples, porque são sempre simples e felizes os tempos de infância que na memória guardamos depois de exorcizados os outros. E é assim que torno a ver com nitidez caminhos percorridos e torno a sentir o prazer de passear ao acaso atraída por aquilo que então, de certo modo apreciava, e que era o som compacto de vozes humanas na aglomeração dos gestos e exclamações, amalgama, confusão. E a imaginação a fervilhar por entre aquela floresta de toldos, ao mesmo tempo que os olhos inquietos e ávidos procuravam, e os sentidos guardavam, fragmentos dessa paisagem incomparável que me tomou e tornou sua. Porque há muitas formas de pertencer a uma terra e esta é uma de entre muitas.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 7 – 5 – 1992

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