quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Não sei de onde partiu a ideia. Mas se não foi da igreja diocesana, teve pelo menos o seu beneplácito. Refiro-me ao actual costume de encimar igrejas e capelas com uma simbólica cruz cristã, constituída por lâmpadas, e que na noite das zonas rurais, sobretudo, brilha como uma mensagem de esperança e já não nos surpreende. 

Surpreendente foi, na noite coreana, por entre a profusa iluminação da cidade de Seul, termos deparado com algumas cruzes da religião cristã, traçadas a verde pela luz das lâmpadas elétricas. E olhando-as era como se estivesse do outro lado do mundo, e olhasse a cruz que, no alto da capela do Bom Jesus do Monte, brilha luminosamente verde, como mensagem de esperança para esta terra conhecida ainda hoje por Couto de Cambeses, embora do couto que foi, nenhuma memória em pedra haja já, a não ser o portão armoriado, aquele que dava entrada para essa casa carregada de história, onde a Justiça e a administração funcionaram durante séculos.

Mas voltando ao assunto inicial, que é o culto da religião católica em Seul, foi-nos dito por Pedro, o nosso guia asiático, que as religiões cristãs, católica e protestantes, têm muitos fiéis nessa cidade, cuja população excede a de Portugal. Ele próprio nos disse ser católico, daí a explicação para o seu nome, o nome do apóstolo. Daí também a explicação para as cruzes luminosas sobressaindo na noite coreana, como um sinal do Divino.

E, se por si só este facto dá da cidade uma imagem carregada de beleza espiritual, igualmente belo é o facto de povos que seguem credos diferentes como são os dos cristãos e, de entre outros, os confucionistas e budistas, que aqui têm os seus templos e, igualmente muitos fieis, viverem num clima de paz e concórdia, onde a mútua tolerância religiosa, a compreensão e a boa vontade não são palavras vãs numa cidade que, seria de admitir, estivesse muito materializada, dado o seu espectacular progresso, sobretudo a partir da preparação para os jogos olímpicos que, como se sabe, aqui tiveram lugar em 1988.

É, de facto, uma cidade que cresce continuamente e onde os altos prédios de dezenas de andares fizeram de Seul uma cidade moderna, sem no entanto deixar de conservar o mais possível os edifícios antigos, os parques arborizados, os museus e palácios e, sobretudo, as velhas igrejas protestantes e católicas, bem como os templos budistas, para que a cidade não se descaracterize, não perca a sua alma, para se devotar apenas ao lucro desenfreado, ao crescimento selvagem, como acontece entre nós, em cidades e aldeias até.

Todos nós conhecemos ou ouvimos contar casos de igrejas que se descaracterizam em nome do progresso, de prédios veneráveis porque carregados de história, os quais se arrasam porque não dão o rendimento que apetece, etc., acontece todos os dias bem perto de nós, quanta vez, às escâncaras, ou subtilmente ao abrigo de leis que se invocam e, por vezes podem ser interpretados segundo conveniências particulares, com absoluta indiferença pelo património cultural de uma comunidade.

Porque, acima de tudo, para uma certa camada social, o que interessa é o lucro que protege a imagem, o “parecer em detrimento do ser”. O que por vezes, sendo dispendioso é também doloroso, se acaso os sinais exteriores de riqueza não coincidem com a verdade. Estes, para quem a simbologia da cruz, luminosamente verde, tem muito menos importância que a luz real, utilitária, que emana dos vários faróis dos seus potentes carros.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 17 – 2 – 1994

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Foi em Xangai, de visita ao Museu de História, ouvindo as explicações do guia acerca das porcelanas expostas que, por uma associação de ideias, me lembrei dos barros da nossa terra, de cuja origem não me vou ocupar aqui por várias razões, entre elas a de não ter formação académica específica que me permita alongar-me sobre o assunto.

Portanto limitar-me-ei a dizer que gostei de ouvir Wang, o nosso guia chinês em Xangai, que se expressava em espanhol, contar-nos a história da cerâmica chinesa, materializada em objectos utilitários e de adorno, cuja história se perde nos tempos, ao mesmo tempo que documentam a milenar história da China em épocas várias.

Segundo uma lenda chinesa, o primeiro recipiente em barro resultou por acaso, quando alguém, tendo construído um cesto em palha, o pintou com barro para o tornar mais útil e firme. Depois deu-se um incêndio e a palha do cesto foi destruída e, consequentemente, o barro cozido, o que o tornou suficientemente sólido para se aguentar no uso a que se destinava.

Assim começou, segundo a lenda, a fabricação da loiça que, milénios depois, iria dar lugar às delicadas porcelanas chinesas que, para serem autênticas, dizia-nos Wang, têm de ser transparentes como jade, finas como o papel, brilhantes como um espelho e sonoras como uma campainha.

Evidentemente que as peças do nosso barro não têm estas características, mas não deixam de ser belas e de ter projecção internacional, como é o caso do galo, cujo simbolismo corre o mundo e é um feliz exemplo de criatividade artística. No que se refere a objectos de uso diário, criados a partir da roda do oleiro, se não têm as características delicadas da porcelana chinesa, têm uma harmonia e delicadeza de formas notável, como por exemplo o cântaro de barro que as mulheres iam encher à fonte e transportavam à cabeça, sem o segurar com as mãos, num prodígio de equilíbrio e elegância dignos de registo.

Belas como esses cântaros são as caçoilas de três pernas e os alguidares vermelhos e vidrados, bem como as almofias e prateiras, igualmente vidradas, apresentando desenhos ornamentais delicados e imaginativos. Hoje quase se poderia dizer que esses objectos mais não são do que peças decorativas, porque o plástico veio substitui-los na utilização diária. Daí, ao serem transformados em objectos de adorno, tornaram-se, consequentemente, apreciados, não pela funcionalidade, mas sim pela elegância de linhas e delicadeza de decoração, sobretudo se se trata de barro vidrado.

Em tudo isto pensei, escutando as explicações do solícito guia, que Wang se chamava, e orgulhosamente falava da milenária história da China, que os fragmentos de cerâmica das vitrinas documentavam, tal como acontece em qualquer parte do mundo em que há arqueólogos apaixonados, como aliás acontece em Barcelos, sendo exemplo essa exposição de arqueologia que saiu dos muros da cidade e se estendeu ao mundo rural para, deste modo, dar a conhecer as origens desta terra chamada Barcelos.

Por tal motivo não posso deixar de aproveitar a oportunidade para dizer aos mentores e executores de tal acontecimento: Parabéns!

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 27 – 1 – 1994

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Aproveitando uma pausa domingueira em Cambeses, vou folheando distraidamente a revista – magazine do JN, com fotografias do Oriente, essa parte do mundo que me foi dado visitar e da qual trouxe um emaranhado de lembranças que, a pouco e pouco, vou desenredando.

Lembranças e também uma espécie de ternura muito especial pelo povo da China continental, sacrificado desde sempre aos caprichos dos grandes senhores, no tempo dos imperadores, sacrificado, ainda hoje, à inflexibilidade das leis ditadas pelos novos imperadores, que vieram substituir os das dinastias.

Conhecido como sendo um povo paciente, persistente, amigo de arriscar no jogo, é também um povo muito supersticioso. E, a propósito, vem-me à lembrança um episódio banal, acontecido em Xangai:

Tínhamos acedido ao convite para visitar uma casa típica de um operário chinês, e lá fomos, cheios de curiosidade, embora prevenidos quanto à inevitável encenação em casos semelhantes. Recebidos pelo dono da casa, um homem de meia-idade, de trato afável, como o são no geral os chineses, pudemos através do interprete, expor-lhe as nossas questões, às quais foi respondendo gentilmente, tecendo, como seria de esperar, elogios ao Poder político, que lhe proporcionou a possibilidade de adquirir a casa onde vivia com os familiares, incluindo os pais dele. Uma casa que teríamos de considerar singela, rudimentar, se a compararmos com grande parte das casas que vemos pelas aldeias e vilas do distrito; uma casa que, se comparada com muitas da parte antiga de Pequim, era indiscutivelmente óptima.

E enquanto o dono da casa falava, a esposa, discreta e sorridente, como é próprio das chinesas, veio sentar-se na sala ao nosso lado, sem interferir no diálogo que o marido continuava a manter com qualquer um de nós. E, já no final da conversa, alguém se lembrou de tirar uma fotografia com a dona da casa e, apontando a máquina, pediu-lhe por gestos para se colocar numa posição favorável à fotografia.

Inesperadamente, porém, a mulher fez uma expressão de pavor, levantou-se bruscamente e, quase a correr, saiu da sala, deixando-nos perplexos e… mudos.

Mais tarde, viemos a saber que os chineses não gostam de tirar fotografias com flash porque a luz pode roubar-lhes um pedaço da alma.

Devia ter sido essa, também, a razão que, na dinâmica e ocidentalizada cidade de Hong-Kong, levou duas raparigas chinesas a fazerem igual recusa perante a máquina fotográfica: uma recusa peremptória, definitiva, e sem sorrisos, o que, de certo modo nos surpreendeu, pois tratava-se, não de uma mulher de meia-idade, discreta e tímida, como a de Xangai, mas de duas recepcionistas de um restaurante flutuante, frequentado por turistas de todo o mundo, muito belas, espectacularmente vestidas de seda vermelha, aparentemente cultas e delicadas e, por dever de ofício, conhecedoras dos costumes “dos bárbaros ocidentais”.

Mas a superstição é algo que amedronta e, amedrontando, interfere muito no comportamento das pessoas. Vimos isso em Macau e até nos chineses que professam a religião católica.

E por cá?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 12 – 5 – 1994

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Há sempre algo a aprender quando visitamos uma terra, quando tomamos contacto com um povo até aí desconhecido. E, muito mais ainda, se se trata de uma civilização de milénios, sempre viva, apesar de todas as vicissitudes que a História registou e as lendas guardaram, como é o caso da civilização chinesa.

Fieis às suas leis ancestrais e aos seus princípios espirituais, eles aí estão, inalteráveis, apesar de tudo, no cumprimento daquilo que consideram os seus deveres, e onde incluem, a par do culto dos antepassados o respeito pelos idosos, os laços familiares.

E, de súbito, vem à memória a imagem que foi possível colher de relance dos cemitérios chineses que vimos dispersos pela Malásia. Sobretudo um deles, na “Colina da Princesa”, em Malaca, chamou-nos a atenção pela sua extensão, e a propósito do qual nos disseram ser o maior cemitério chinês fora da China. Trata-se, realmente, de um cemitério muito extenso, sem o espetro geométrico dos nossos mármores floridos, rigorosamente alinhados, e dos nossos cemitérios ocidentais, dominados, quanta vez, pelo desejo de um certo luxo ostentatório e onde se chama de “entes queridos” aqueles que morreram quase na solidão, ou mesmo na solidão, na fria indiferença de um lar de idosos, longe dos seus familiares.

Nos cemitérios chineses, geralmente em colinas desabrigadas, apenas se vê, assinalando as sepulturas dispersas, um semicírculo em betão ou tijolo revestido a argamassa, tendo no centro uma lápide com o nome, em caracteres chineses. Poderia parecer desleixo ou indiferença pela memória dos familiares se não soubéssemos a importância que o culto dos antepassados tem para eles, bem como o respeito pelos velhos que continuam a escutar como os detentores da experiência, que o mesmo é dizer sabedoria. E porque são escutados e respeitados, porque a sua presença é desejada e eles o sabem, não precisam, os velhos, de ser agressivos, exigentes, intolerantes, porque a família está lá por perto para os atender e amparar.

Mas sendo cuidadosos com os velhos, não deixam, também, de ser solidários entre si. E é sobretudo no estrangeiro que essa solidariedade mais se nota, entre eles, sendo bem conhecido esse conceito com que os outros os distinguem: “Onde estiver um chinês, é esperar, que uma centena deles não tardará a chegar.”

É a importância dos laços familiares a estender-se também colateralmente, a despeito de todas as limitações que as atuais leis, que todos conhecemos, impõem. Solidariedade que espanta a quem os observa. Será porque, desde sempre, as atribulações e o sofrimento estiveram na vida da população, excluindo as camadas ditas superiores?

Seja como for, é difícil para nós, ocidentais, compreender esse povo que, desde sempre, tão fustigado tem sido, até pela própria natureza. (Basta dizer que, em Agosto, em Pequim, as temperaturas do ar são superiores aos 40 graus, e, no inverno, quando a noite vem, o termómetro desce aos 20 graus negativos). E assim sendo, que mais dizer?

Será que a solidariedade só é autêntica quando o sofrimento é colectivo?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 14 - 4 – 1994

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Foi ao deparar com vasos de petúnias floridas, numas escadas exteriores de uma casa de Cambeses que, de súbito, me veio à lembrança a nossa chegada à Coreia do Sul, país que estava no programa visitarmos, e cuja visita se começava então a cumprir.

Tínhamos deixado a severa cidade de Pequim, bem como a trepidante cidade de Xangai, trazendo connosco a lembrança de uma certa forma de vida austera e cheia de limitações para quem aí anonimamente vive, sobretudo em Pequim, cidade de poucas flores e muitas árvores de médio porte.

Por isso foi com alegre surpresa que, ao desembarcarmos em Seul, deparámos logo à saída do Aeroporto com a garridice de vasos de petúnias intensamente floridas, alinhadas ao longo do passeio, do outro lado da rua, flores que não esperávamos encontrar na Coreia com tal profusão, sendo como é, e segundo os compêndios de botânica, uma flor oriunda da América do Sul, bem adaptada àquele clima tropical, para satisfação dos coreanos que, segundo nos pareceu, gostam de flores e de recantos ajardinados. E como se as flores que eles cultivam não fossem suficientes, pintam frequentemente motivos florais como decoração, muito em especial nas janelas dos autocarros de turismo, as quais ostentam bonitas grinaldas que funcionam como alegres dísticos de “boas vindas”.

É um detalhe curioso, que nos surpreendeu, tanto mais que Seul, tal como Pequim ou Xangai, é uma cidade demasiadamente povoada, e onde é bem notória a agressividade da indústria e do comércio, tendência que não anula, como seria de esperar, o gosto pela beleza, tanto da natureza como daquela que a Arte proporciona a quem dela sabe cuidar.

Uma cidade de contrastes, da qual falou com entusiasmo o nosso guia coreano, um jovem asiático que viveu alguns anos na Argentina, para onde seus pais haviam emigrado, e que cedo voltou à terra das suas raízes, confiante no futuro do seu país e empenhado em concluir o seu curso de Economia. Pedro, de seu nome, revelou-se um guia experimentado em nos mostrar as belezas da cidade, locais que nada tinham a ver com as ruas modernas, de seis faixas de rodagem e intenso trânsito, perigosas de atravessar, mesmo nas passadeiras com semáforos.

Diferente foi, no segundo dia da nossa estadia, a visita feita ao maravilhoso “Jardim Secreto”, onde se encontra ainda intacto o palácio real, vazio de realezas desde 1910. É um jardim paradisíaco, com belas construções e belíssimos recantos, Aí se passeava o rei, rodeado de muitos servidores e também de intelectuais, sendo famosa a biblioteca então ali existente, e cujo edifício se mantém intacto, bem como o gabinete de estudo, numa pequena e florida colina.

A propósito das camadas sociais da época real, Pedro explicou a curiosa divisão em classes, vigente nesse tempo. Em primeiro lugar, como é óbvio, figurava a família real. Em segundo lugar os intelectuais. Em terceiro a classe popular média, que incluía comerciantes, agricultores e operários. E por último, a classe popular mais baixa, que abrangia criados e, curiosamente, os carniceiros. Estes assim considerados por terem como profissão destruir a vida. Hoje evidentemente que é diferente, e os criados, se acaso ainda os há, são empregados como outros quaisquer, e os carniceiros, simples comerciantes ou industriais, em nada diferem dos demais.

Hoje, diferentes são os passos que percorrem os extensos arruamentos desse jardim Piwon, chamado “Pi”, que quer dizer jardim, e Won” que significa secreto. Jardim franqueado aos turistas sobretudo, que de todo o mundo ali chegam e se maravilham, o que não foi totalmente o nosso caso, porque aqui em Portugal temos jardins de flora diferente, é certo, mas de beleza nada inferior e onde as petúnias dão o seu colorido, a par das sécias e dos amores-perfeitos.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 17 – 3 – 1994

terça-feira, 18 de outubro de 2016


“Há boa água em Cambeses, ainda, suponho. Há em Bouçó boa água para beber, julgo poder afirmá-lo”. – Foi o que assim pensei, ao olhar a água que, vinda do interior do monte que lhe é sobranceiro, jorra dia e noite na fonte pública existente no lugar. Fonte que veio substituir a antiga fonte de mergulho que alimentava a necessidade das casas onde então havia muitas crianças. Mas não foi dessa fonte desaparecida que me lembrei, olhando a água. Lembrei-me antes, talvez por uma associação de ideias, dessa longínqua Singapura, cidade que em tempo de férias me foi dado admirar. Capital de um país independente, não é tão independente assim, porque depende dos países vizinhos para poder sobreviver. E digo “depende” porque é essa a palavra exata.

E no entanto Singapura, cidade jovem, densamente povoada, capital de um país em contínuo crescimento económico, rica, moderna, semeada de arranha-céus onde se instalaram bancos poderosos e grandes hotéis, parece, à primeira vista, ser auto-suficiente e não necessitar de nenhuma ajuda. Mas necessita e muito, embora, aos olhos do turista, pareça quase um paraíso.

E de facto é essa a imagem que da cidade se colhe, quando se percorre as suas ruas: os edifícios coloniais do século passado estão bem conservados e aproveitados, bem como muitos outros vestígios da sua curta história. Os passeios estão continuamente pejados de gente jovem, sorridente, aparentemente educada, e o trânsito intenso é bem ordenado. Há grande profusão de estabelecimentos e centros comerciais, onde orquídeas florescem à entrada, Ruas escrupulosamente limpas e bem iluminadas à noite, mas rigorosamente vigiadas, para que a limpeza e a segurança dos cidadãos não seja letra morta. 


Pois bem, essa cidade rica, moderna, ordenada, florescente, depende, como se disse, dos seus vizinhos e sem eles todo esse esplendor acabaria em bem pouco tempo e a qualidade de vida também, porque lhes faltaria o principal para viverem: a água.

Água que vai (pude observar) em canalizações de larguíssimo diâmetro, ao longo da ponte, que modernamente liga a ilha de Singapura à Malásia. Ponte que é sobretudo de arrojada engenharia moderna, tal como são as estações do metro, floridas, apesar de subterrâneas, os arranha-céus de muitas dezenas de andares, onde se nota um certo gosto pelo belo, nos vários arranjos artísticos que tornam mais leves e graciosas essas grandiosas e mastodônticas construções.

Resumindo: Esta cidade moderna, segura, rica, onde as orquídeas florescem exuberantemente, das quais a vermelha é, poeticamente, a flor oficial do país, esta cidade à beira mar nascida, cidade de poderoso comércio, é uma cidade frágil, apesar de se manter sem a ajuda de terceiros porque, como disse, lhe falta um dos elementos mais necessários à vida: água doce.

“Se nos jardins do palácio governamental jorrasse a frescura das águas desta fonte de Bouçó, se os de Singapura tivessem um só dos nossos rios, sem dúvida que ele seria um rio cristalino e puro. Um rio sagrado… - penso ainda, ao afastar-me acompanhada pelo som cristalino da água caindo, - E nós?”

Para quê falar da nossa vergonha?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 19 – 5 – 1994

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Num passeio apetecido em dia soalheiro, atravessámos a ponte que em Cambeses liga as duas margens do rio Este, uma ponte rústica e sólida, como o atestam as pedras de que é feita e a resistência que sempre tem oferecido às cheias que, agora, menos frequentemente acontecem, tornando mais triste este rio triste e sujo, por razões estranhas à vontade das gentes de Cambeses.

O lugar, para quem, de um modo geral, tem os olhos habituados à paisagem citadina, é de uma grande beleza, desde que não olhem para baixo, para as águas grossas e negras do rio, vazio de peixe, ele que, não há ainda muitos anos, era um paraíso para os pescadores desportivos.

E foi atravessando a ponte rústica e rudimentar, que mais não exigia o trânsito que por ali passa, que me lembrei de Seul, a cidade coreana do rio Hang Gang, que muitas pontes ali o atravessam. Mas não foi pelo rio nem pela cidade arquitectónica, nem tão pouco pelas muitas pontes, umas antigas, outras modernas e funcionais, que me lembrei de Seul, a cidade do rio Hang Gang.

E lembrei-me de Seul, porque me lembrei do dia em que seguimos por uma das pontes mais modernas em direcção ao edifício mais alto de Seul onde, num dos seus 65 pisos, nos esperava o almoço programado, um almoço tipicamente coreano. E lembro-me da nossa estranheza quando, paralelo à comprida ponte por onde seguíamos, deparámos com aquilo que parecia serem os pegões de uma ponte moderna inacabada.

E antes que formulássemos a inevitável pergunta do porquê da interrupção dessa obra, a jusante da ponte, por onde continuávamos, o nosso guia coreano, que Pedro, catolicamente, se chamava, apressou-se a dar-nos a explicação.

Aquela ponte tinha sido projectada, aprovada e começada a construir sem que ninguém se tivesse apercebido que o local era um abrigo de aves marinhas, que ali costumavam nidificar.

Quando alertados, os homens do Poder, compreenderam que, se a ponte fosse construída, o consequente tráfego iria perturbar a vida das aves, afugentá-las dali, interrompendo assim o seu ciclo de reprodução, mandaram que a obra fosse suspensa. A ordem foi cumprida e o projecto anulado, apesar dos dinheiros já gastos. E a ponte que depois se construiu, a levante da primeira, estava suficientemente afastada da outra, para não prejudicar o ciclo de vida dessas aves.

Atitude de admirar, sobretudo porque se trata de uma cidade voltada para o progresso económico, para a competitividade, para o trabalho. E também é nosso dever apresentar, para a qualidade de vida dos habitantes, porque a dimensão desse género, há de forçosamente reflectir-se noutras situações, onde a qualidade de vida é um dos principais valores a ter em conta.

“Foi assim que pensaram os homens do Poder e da economia bracarense quando permitiram, e continuaram a permitir que a vida animal, piscícola neste caso, se extinguisse de vez? “ perguntou alguém ironicamente, apontando para o rio onde a morte reina há muito. Claro que a atitude de quem poderia evitar ou minimamente remediar esta pequena catástrofe é a indiferença, porque é a mais cómoda. Pior ainda se tem a vida demasiado limitada pelo cifrão. E, penso eu, se por acaso forem a Seul e lhes contarem, orgulhosamente, essa decisão coreana, dos homens do Poder, talvez nem oiçam. E se ouvirem, darão como opinião um sorriso, de cínica condescendência, perante essa atitude do Poder.

Cada um, mais não pode dar que aquilo que possui, não é verdade?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 24 – 2 – 1994

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

A alteração do título desta nova série de crónicas não significa que a qualidade de vida em Cambeses tenha deixado de estar presente nas minhas preocupações. Nem tão pouco significa que deixei de acreditar numa melhor qualidade de vida para Cambeses, no que respeita à preservação dos seus valores culturais, bem como na adoção de outros que possam complementarizar os ainda existentes.

Porque uma freguesia como esta, que foi na região de Braga e Barcelos, uma das primeiras a ter a sua “escola das primeiras letras”, não pode, agora que tem melhor nível de vida, economicamente falando, deixar desaparecer a herança legada por esses antepassados que, em Cambeses, lutaram por um melhor nível de vida cultural para os seus habitantes.

Porque nunca é demais repeti-lo, uma terra como esta, mais antiga que a nossa nacionalidade, uma terra durante séculos ligada estreitamente à Sé de Braga, não pode esquecer os valores espirituais que a ela sempre presidiram, em momentos difíceis da sua história.

E já que não resisti a falar de valores espirituais, seria injusto se não louvasse aqui uma associação ou, mais exactamente, uma confraria velha de séculos, que através dos tempos chegou até nós bem estruturada, ciosa de bem cumprir, no respeito pelas leis ancestrais que os regem, que o mesmo é dizer, pelos bens espirituais que cultivam.

Estou a referir-me, como não podia deixar de ser, à Confraria do Senhor dos Passos que, sem subsídios nem apoio de entidades oficiais, mas unicamente pelo sacrifício e devoção aos irmãos da Confraria, sempre, em cada primeiro domingo da quaresma, levam a efeito as solenidades dos Passos, as primeiras da Diocese.

Sempre em cada novo ano que surge, tudo corre normalmente, sem atritos nem desacertos entre eles, porque alimentados pela força das raízes ancestrais, que as seculares leis lhes transmitem.

Aliás, é sobretudo através das velhas e fundas raízes que as grandes árvores melhor se sustentam e sustem de pé.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 26 – 11 – 1992

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Da minha estadia em Goa e do muito que aí me surpreendeu e me enterneceu, não posso deixar de destacar um passeio pelo rio Mandovi, um desses passeios oferecidos aos turistas, como aliás é vulgar acontecer em qualquer parte do mundo. E o barco que nos levou a admirar o pôr do sol – era essa a intenção – nas águas largas e tranquilas do rio Mandovi, nada teria de especial, para além da paisagem que nos oferecia, e das cores vermelhas de um pôr do sol quente e rubro como só acontece por aquelas paragens, se não tivesse havido, no programa de animação incluído no passeio, algo que não só alegremente nos distraiu mas também me surpreendeu e enterneceu.

Um programa de animação em princípio destinado a todos os passageiros turistas, indianos uns, outros turistas de cabelos loiros, talvez germânicos, talvez americanos ou nórdicos, não sei.

Sei apenas que o grupo artístico, goês, que a si mesmo se intitulava “Grupo Alegria” depois de se dirigir em inglês ao público em geral, e era bastante naquele espaçoso barco, começou a falar em português, traduzindo o que havia dito já, e acrescentando que o espetáculo era dedicado a um grupo de portugueses que tinham vindo assistir à inauguração do consulado de Portugal. E ainda ele não tinha terminado esta frase, já uma salva de palmas revoava no espaço aberto entre céu e rio. Olhando em redor, pude observar que o maior entusiasmo nas palmas era dos passageiros de raça indiana, embora houvesse gente loira que os secundasse.

Depois foi um suceder de músicas, se não antigas, pelo menos com algumas décadas, como a aportuguesada “raspa”, e sobretudo música popular e folclórica, desde a “Tia Anica de Loulé” ou “Os Olhos da Marianita”, até ao nosso “Malhão”. Momentos musicais a que se juntava a atuação de um grupo de danças que coreografou histórias de pescadores e barqueiros do rio. Finalmente, mudando de traje, eles e elas, trocaram os trajes indianos por outros considerados como regionais portugueses, constando os delas de saia rodada, avental e lenço e os deles da calça e colete pretos, à ocidental, e faixa vermelha à cinta. E assim vestidos dançaram para nós o vira e o malhão, o corridinho e outros, numa interpretação onde o ocidente e o oriente se misturavam, resultando daí um espectáculo onde a ternura e a harmonia se davam as mãos. Surpreendeu-nos, no entanto, ouvir do apresentador a informação de que se tratava, não de música portuguesa mas de “música antiga goesa”. E quem, enternecidamente, não os compreenderia?

Mal escondido ainda, o sol, logo a noite, rápida como sempre, se anunciou, e com ela o final do passeio. E quando, por entre sorrisos trocados com as mulheres de sari e com quem as acompanhava, descemos as escadas a caminho do cais, estávamos felizes, sensibilizados e enternecidos, também. Quem não o estaria?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 23 – 2 – 1995

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Se alguém ainda sonha com um passeio tranquilo pelas aldeias de Barcelos, é sonho vão, sobretudo se segue pelas estreitas e antigas estradas camarárias, em tardes de domingo, e tem de atravessar locais onde funcionam cafés, e sobretudo discotecas.

Acontece isso mesmo perto de Cambeses, já em Nine, junto a uma discoteca, na estrada que liga as duas freguesias. Há os estacionamentos que são onde calha, e há os grupos de pessoas que ficam a conversar, parados na estrada, como se estivessem num jardim, e há os incautos e os “donos disto tudo”. Por estas razões torna-se necessário efectuar autênticas gincanas com a maior calma possível. Não sei quem tem autoridade para disciplinar estas coisas. Ali, parece que ninguém. O mesmo acontece em Cambeses, junto ao apeadeiro, onde por vezes o trânsito é um pandemónio. Só se avança à custa de perícia e paciência e, mesmo assim, os “toques” vão acontecendo, felizmente sem desastres pessoais, o que se deve à reduzida velocidade praticada, muito inferior à das gincanas desportivas.

E deixando estas coisas que ninguém parece interessado em fazer melhorar, evoco de súbito o trânsito nas cidades chinesas que me foi dado visitar: trânsito de tal modo emaranhado de ciclistas que só um motorista chinês, paciente como só o são os chineses, consegue enfrentar, avançando por entre este autêntico formigueiro de ciclistas sem molestar nenhum deles.

Para se fazer uma ideia, basta dizer que, só na cidade de Pequim, há cerca de sete milhões de bicicletas, disseram-nos, e acredito, tantas elas eram diante dos nossos olhos, a surgir de todos os lados, a meterem-se diante do autocarro, que se limitava a seguir cautelosamente e a buzinar constantemente. Não um buzinar agressivo, próprio de quem está enervado, muito à nossa moda, mas um buzinar de quem pede licença suave e quase que com um sorriso, que é coisa de que os chineses costumam deitar mão, nas mais variadas circunstâncias.

Em Taipé, capital dessa ilha que embora chamada de Taiwan, também é conhecida por Formosa, que foi assim que os marinheiros portugueses a acharam e chamaram, em Taipé, dizia, o trânsito também é caótico, mas os veículos de duas rodas aqui são motorizados, sinal de progresso, esse progresso que arrasta consigo um fantasma negro chamado “poluição”. Uma poluição já de tal modo acentuada que muitos dos motociclistas conduziam de máscara! Eu vi.

Não tenho nada contra os veículos motorizados. Antes pelo contrário. Mas que se gasta muita gasolina só por gastar, sobretudo nas emaranhadas tardes de domingo, lá isso é verdade. Mas como cada um tem o direito de gastar como quer…

O mesmo não dirão os donos de automóveis em Quala Lumpur, capital da Malásia, cidade moderna, de modernos arranha-céus e ruas amplas, bem como a cidade de Singapura, das mais limpas e ordenadas que é possível apreciar, porque nas horas de ponta nenhum automobilista pode circular nestas cidades, só. Tem de levar consigo companhia ou pedir a quem o leve. Isto na intenção de reduzir o tráfego de carros ocupados por uma só pessoa, como é tão vulgar na nossa terra. E se essa moda se fazia lei, também, cá pelos nossos lados?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 10 – 2 – 1994

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Várias foram as pessoas que indagaram junto de mim, das razões do meu afastamento das páginas deste jornal. Evidentemente que não se tratou de um afastamento, mas antes de uma curta ausência devida, em grande parte, ao amontoar de compromissos com a escrita, compromissos decorrentes, em certa medida, das impressões da viagem que, em tempo de férias, me foi possível efectuar ao longínquo oriente, com destaque para a milenária e misteriosa China, sem esquecer a Coreia e Malásia.

Daí que, ao retomar a minha colaboração nestas páginas, me seja difícil resistir a, uma vez por outra, falar de experiências vividas nessas terras, do outro lado do mundo. Não será propriamente um relato de viagem, mas antes uma ou outra pincelada, a propósito de pequenos incidentes de rua, como por exemplo este que, de súbito, me veio à lembrança. Foi no primeiro dia da nossa estadia em Pequim.

Após a acomodação no Hotel Sharaton, (em Pequim há excelentes hotéis modernos) estava programada uma visita ao Templo do Céu e Pavilhões Imperiais adjacentes, esses magníficos edifícios de telhados azuis de porcelana. E, cumprida esta, atravessámos o parque para, por uma outra porta, atingirmos o exterior.

Foi então, em plena rua, que deparámos com um espectáculo inesperado: centenas de crianças e pré-adolescentes, rapazes e raparigas, em uniforme escolar azul e branco, pejavam o passeio junto do qual, alguns autocarros estavam de portas abertas, sob o olhar de adultos, possivelmente professores, que pacientemente esperavam por aqueles que iriam embarcar.

Em pequenos grupos, trocavam palavras que não entendíamos, mas que nos pareciam afectuosas e não escondiam a emoção própria do momento, em vendo em muitos olhos sinais claros de lágrimas, e nos rostos femininos um ou outro desatado pranto, enquanto apertavam demoradamente as mãos, já que beijos e abraços na via pública, não é expressão de afeto adoptada desinibidamente no oriente.

E até mesmo um grupo que, num largo mais adiante, tocava viola e cantava, num jeito copiado do ocidente, revelava, ao dirigir-se para um autocarro, sinais de tristeza, que os sons sincopadamente alegres da viola não puderam anular.

Ao querermos saber da razão dessa separação, que se afigurava triste para quase todos eles, foi-nos dito que se tratava de um grupo de estudantes japoneses que, ao abrigo de um qualquer acordo, tinha passado uma temporada em Pequim, em convívio fraterno com os seus colegas chineses, do qual resultou uma espontânea amizade entre os estudantes destas duas nacionalidades, bem nítida no momento da separação.

Cena que podia apenas despertar uma terna e afectuosa apreciação, se não fosse impressionante, para além de significativa. E isto pela simples razão de nos lembrarmos que muitos deles serão talvez netos dos soldados que, décadas atrás, se guerrearam mutuamente, com o ódio e a crueldade que as guerras sempre comportam. E a guerra entre China e Japão não foi exceção, muito pelo contrário.

Ia continuar a divagar… inesperadamente porém interroguei-me: E porque não a esperança?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 20 – 1 - 1994

domingo, 9 de outubro de 2016

Falar unicamente de Cambeses talvez não desperte, a nível geral, grande interesse, já que Cambeses é apenas uma das muitas freguesias do Concelho, para mais situada no extremo e, por razões históricas, mais ligada a Braga. Ou, melhor dizendo, à sua Sé Catedral. Mas se Cambeses desperta pouco interesse, muito menos despertará Bouçó, um lugar desta freguesia, tranquilo, onde se vive devagar.

Mas seja como for, apetece-me falar de Bouçó, prometendo no entanto não me deixar levar por sentimentalismos piegas ou saudosistas, inúteis. Também não quero deixar-me tomar de desencanto ou desilusão, porque Bouçó, apesar de algumas alterações exteriores, continua igual na sua essência: um lugar tranquilo, bem perto das bouças (daí o topónimo Bouçó), um lugar de paz, de harmonia, onde era bom ver as crianças crescerem. E muitas foram as que ali nasceram, já neste século XX, e aqui cresceram. E porque eram muitas, e as casas poucas, embora sólidas e espaçosas quase todas, muitas delas, mal saídas da adolescência, seguiam outros rumos. Mas algumas ficaram, jovens já. E outras crianças nasceram depois.

Gerações substituindo gerações, sem empurrões nem atropelos, e muito menos querelas, Porque desde sempre o respeito mútuo funcionou. E o valor da palavra dada. E a entreajuda, se necessária. Disputas judiciais entre vizinhos, se alguma vez as houve, há muito se perderam na poeira dos tempos. Nunca se soube delas nem das hipotéticas consequências, nem tão pouco de relações tempestuosas, fosse a que nível fosse. Por isso posso afirmar que da paz em Bouçó eu sei, desde que me conheço.

Mas perguntar-se-á: “porquê falar de coisas banais, como essa paz em Bouçó, que acaba por ser banal?” De facto, assim seria se algo não começasse a preocupar, tal como a nuvem cinzenta na linha do horizonte preocupa quem prevê tempestade.

É algo que nada tem a ver com gente que no lugar tem fundas raízes, mas antes com alguém que veio de fora para provocar querelas, trazer o desassossego. Não é a minha paz que está em jogo, nada aqui de pessoal. Se assim fosse o meu caminho teria de ser outro, É a paz do lugar de Bouçó, das gentes aqui plantadas, com fundas raízes, que está em jogo. E é, portanto, deste chão, que me sinto impelida a falar, ao mesmo tempo que quero acreditar que o bom senso vai ter lugar. E tudo voltará a ser como antes, com esse passado de harmonia e paz, de solidariedade. Essa paz em que cresci, onde aprendi a olhar a vida de frente, tal como a olhava quem assim me ensinou.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos em outubro de 1994

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Vou começar por afirmar publicamente que sou amiga das árvores, que gosto de as ver cuidadas e viçosas, cumprindo a missão que a natureza lhes destinou, que as protejo como posso, que me angustio e revolto com os incêndios de verão, e todos os anos temo pelos pinhais de Cambeses. Pinhais que ainda se vão mantendo quase intactos, apesar das ameaças que, por vezes, parecem pairar sobre eles.

Cresci numa terra onde as árvores abundam, árvores de fruto ou não, que vicejam na borda dos campos, árvores robustas, semi-selvagens, feitas “uveiras” a par de outras que nos presenteavam com pequenos frutos espontâneos e acidulados quase sempre. Puros. Bichentos às vezes. Naturais. Por tudo isto, repito, sempre gostei das árvores.

Mas há uma, em plena cidade de Barcelos, que não gostei de encontrar diante dos meus olhos. Não pela árvore, que é bela e viçosa, mas porque, tendo crescido num local inadequado, se interpunha entre mim e a bela fachada quatrocentista da nossa futura biblioteca municipal. Claro que a árvore não tem culpa de ter nascido ali. Culpa teve quem ali a plantou, sabendo, como é óbvio, que em breve ela iria interpor-se entre a fachada do belo edifício e o olhar de quem quisesse admirar essas pedras. E agora, que fazer?

A árvore é jovem e bela. Tão bela como a praça onde cresceu, uma praça com alma, com uma dignidade e características muito próprias. Uma praça rodeada de edifícios bem conservados, honrando assim aqueles que, tendo a seu cargo preservar bens dessa natureza, souberam defender esse conjunto arquitectónico de possíveis cobiças e sonhos megalómanos.

Praça bonita, repito, harmoniosa, sob o olhar da alta torre. Praça que, com a nova biblioteca a funcionar, se vai tornar, julgo eu, na sala de visitas da cidade.

Mas, e a árvore?

Que fazer com esse ser vivo? Que me perdoem os botânicos e técnicos de jardins, o atrevimento da sugestão, que é esta: - mudá-la para um outro local (tecnicamente já é possível, julgo saber).

A praça, já de si bela, pouco perderia se a árvore fosse retirada. E a árvore, se tratada com os cuidados que as novas técnicas possibilitam, poderia até lucrar se, num outro local, possivelmente mais apropriado, pudesse, em total liberdade, crescer mais ainda.

E quanto à bela e granítica fachada da nossa futura biblioteca, essa muito teria a ganhar porque poderia ser admirada do outro extremo da praça, e as suas portas, a descoberto, seriam claro convite a uma visita que o mesmo é dizer, à possibilidade de enriquecimento cultural. Essa riqueza, de que tão necessitado se anda nesta era de falsos valores, de materialismo exacerbado, de regras surdas, de tanta coisa negativa, desgastante e até predadora.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 7 – 1 – 1994

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Nunca foi minha intenção falar aqui do escritor Virgílio Ferreira, porque nenhum laço o prende a Barcelos, nem sequer ao Minho, embora saibamos que um escritor dessa dimensão não é pertença exclusiva da terra onde nasceu e viveu. Ele é de todo o mundo.

Mas hoje, ao passar um primeiro olhar pelo Jornal de Barcelos, deparei com a pequena nota, que também poderá ser notícia, da responsabilidade de Virgílio Ferreira, na qual se apontava para o exemplo da Faculdade de Letras do Porto, que não esperou pela morte desse grande escritor, para o homenagear em vida, trazendo até lá estudiosos da sua obra, vindos de diversas partes do mundo, que sobre ela falaram para todos nós.

E porque eu estive lá, na qualidade de participante convidado, e conservo ainda nos olhos e nos ouvidos todo o deslumbramento do que foram esses três dias, não posso deixar de aqui dar o meu testemunho e falar sobretudo da minha emoção que durante esses dias, no tempo de que pude dispor, ter convivido com esse homem de letras que, sendo gigante, se apequenava na sua simplicidade e na tranquila singeleza com que, apesar da enorme fadiga que situações do género por vezes acarretam, sempre esteve presente.

Simpático, atencioso e paciente para com todos os que, sempre que possível, se lhe dirigiam para o cumprimentar, para lhe falar, para o louvar, assim se manteve inalteravelmente, talvez porque é o senhor de uma consciência serena, nos seus 77 anos, completados no primeiro dia do Colóquio. Uma vida já longa de que falou, na sua singeleza tão natural, uma vida com futuro, enquanto os Altos Desígnios assim o permitirem.

Não vou falar aqui do escritor, e muito menos da sua obra literária, que ele continua a produzir, e da qual disse, a propósito, que se passava com ele o mesmo que com a “Académica” da sua mocidade, quando todos entusiasmados com os golos a seu favor, pediam em coro “ Mais um, mais um!” Pedido que a ele sempre fazem: “mais um, mais um livro!”

E foi neste espírito de entusiasmo e admiração que, no final do jantar, que teve lugar, no Hotel Sharaton, os presentes (e muitos eram, e de várias nacionalidades e condição) o aplaudiram na despedida, com um coro de “Mais um, mais um, Virgílio!” quebrando deste modo os formalismos e “poses” que um espaço físico como aquele por vezes impõe.

Alguns dias passaram já e a emoção vai serenando para dar lugar à reflexão. E por isso hoje, ao ler a nota do Jornal de Barcelos sobre Virgílio Ferreira, não pude deixar de pensar nos que em Barcelos, saberão quem é porque, mesmo sendo bastantes, é sempre uma parcela muito pequena da sua população. No entanto, outro seria o panorama, se Virgílio Ferreira fosse nome de jogador de futebol ou hóquei, de político da moda ou até um desses que se passeiam ao volante de carro de alto preço, preocupados com os sinais exteriores da sua fugaz e inglória riqueza. Sim, porque a riqueza do escritor agora homenageado não é fugaz nem inglória, nem se perde pelas aparências.

Quem se lembra dos poderosos contemporâneos de Fernão Lopes, exceptuando aqueles que o seu testemunho escrito deu vida ao longo dos séculos?

Mas voltando ao tema da notícia, que foi consequentemente tema desta crónica, eu direi apenas que este desinteresse pela literatura, por certos valores espirituais, é muito da responsabilidade do Poder que, salvo as excepções que confirmam a regra, tem tendência a investir no que de imediato poderá dar dividendos, que o mesmo é dizer “votos”. Pondo de parte a educação de um povo que olha o livro como um objecto a esquecer após a escolaridade obrigatória.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 18 - 2 - 1993

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Hoje vou falar da Quinta do Paço de Palmeira, cuja casa tive o privilégio de recentemente visitar, quinta que tendo sido pertença dos dignitários eclesiásticos de Braga, é hoje pertença de uma entidade bancária. Quinta que teve a sorte de, numa época materializada como a nossa, se ter encontrado um dia com o olhar de um homem que, sendo financeiramente poderoso, era também um homem sensível, amante da arte. Um homem que não se deixou ofuscar pelos sinais exteriores de riqueza nem abusou do poder que o dinheiro dá e, muito menos, se entregou, de corpo e alma, à sedução do poderio pelo dinheiro, já que parte da sua fortuna foi colocada ao serviço da cultura, do que é prova irrefutável a Fundação que ele deixou.

E se falo aqui na Quinta do Paço, de Palmeira, ali perto de Braga, é porque não posso deixar de evocar uma outra de igual nome, aqui em Cambeses, que simbolizada no seu vetusto edifício de vários séculos, falava de um passado quase tão antigo como a nacionalidade. Falava… mas já não fala porque desapareceu do campo visual.

Sede do concelho rural que Cambeses foi, as grandes e várias salas da Casa do Paço, de que muitos de Cambeses se hão de lembrar, não teve a sorte de receber a visita que a sua homónima de Palmeira terá recebido. Por isso as suas salas não foram restauradas nem nelas se instalaram móveis e objectos de arte que dessem testemunho vivo de um passado de séculos que, sem dúvida, seria motivo de orgulho para os habitantes deste velho Couto, tal com o a Quinta do Paço, em Palmeira, o é hoje para aquela freguesia, não só pela História, mas também porque é nome que anda na boca dos poderosos e ilustres, e também dos que simplesmente amam a arte e a história.

Do que foi a multicentenária Casa do Paço, do Couto de Cambeses, nada resta. Do que foi a sua remota grandeza, poucos vestígios há hoje. Sei que não adianta recriminar os homens do Poder de então, que tão facilmente deram autorização para que o desastre acontecesse. Um desastre legal, nada que as leis de então proibissem.

“Hoje talvez fosse diferente…” pensei quando, da velha casa do Couto me lembrei, ao percorrer essa outra de que aqui falo. E, inesperadamente, surpreendi-me a devanear. “Se esse homem do Louro, que tão perto vivia do velho Couto de Cambeses, tivesse passado por ali…”

Mas não passou. Nem ele nem nenhum santo protector dos edifícios que são pedras vivas, pedras que falam do passado. Para tudo se quer sorte. Até para as casas carregadas de séculos de História, como esta que foi a Casa do Paço do Couto de Cambeses, e que tão ingloriamente terminou. Sei que não adianta falar, porque já nenhuma solução pode haver, que restitua ao velho Couto a casa que foi símbolo do seu poderio. Tudo acabou. Ponto final.

Mas que esta terra, que ainda hoje é conhecida simplesmente por “Couto”, ficou mais pobre, sem dúvida que ficou.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 17 – 6 – 1993

terça-feira, 4 de outubro de 2016


Uma vez mais vou falar do jornal que em Cambeses tinha a sua sede e se intitulava “O Domingo”, e de alguns aspectos interessantes relacionados com este semanário que durou, como já se disse, exactamente dois anos e cuja publicação não falhou um único número, já que foram precisamente cento e três os números publicados nesse espaço de tempo.

Entre muitas coisas, há nele uma nota curiosa, dirigida ao leitor: “depois de lerdes este boletim, passai-o a outros para que o leiam também.”, o que pode ser interpretado como um desejo de enriquecer culturalmente o público leitor, que seria sobretudo o de Cambeses, e o de Nine também, freguesia esta que, como se sabe, embora pertencendo ao concelho de Vila Nova de Famalicão, é vizinha de Cambeses, ligada a ela por vias de fácil acesso, quer ferroviariamente, quer rodoviariamente, quer pedestre.

Mas voltando ao “Domingo”: não sei se o público de Cambeses correspondia ou não a esse desejo do editor do jornal. De qualquer modo não me parece haver razões para optimismos, embora, como já tive ocasião de dizer, muito antes de aparecer este jornal, já a escola funcionava em pleno, preparando assim potenciais leitores. E se não me parece haver razões para optimismos em relação a um facto passado, este é baseado no presente panorama cultural da freguesia, cujo nível de vida subiu nas últimas décadas, espectacularmente… mas só isso. Claro que há casos a ressalvar, mas poucos infelizmente.

Quanto ao editor, conheço pouco ou quase nada da personalidade do Padre Peixoto, mas parece não haver dúvidas de que era um homem que, possivelmente, dentro das limitações que a sua condição de pároco lhe impunham, se interessava pela Cultura e, a par disso, vibrava com a situação política do país. Era uma época, não só ainda de transição, já que a monarquia, como se sabe, findara pela força, poucos anos antes, mas também uma época de instabilidade, agravada pela situação que então se vivia perante a Primeira Grande Guerra. Todo um conjunto de circunstâncias que teriam forçosamente de exaltar os ânimos de todos, e o Pe. Peixoto, tal como o seu colega de Nine, não seriam exceção.

Daí a razão de ser deste fragmento (saboroso) de um texto que foi incluído numa secção então recém-criada do jornal e intitulada “Polémica”, o qual não resisto a transcrever, ressalvando desde já qualquer lapso, porque os elementos que possuo são simples apontamentos e não fotocópias, impossíveis de obter de momento, como alguns saberão.

Foi publicado no número 53, de 30 de maio de 1915 e reza assim:

“(…) o estado não quer para si religião: deixemos isso. Mas não impeça que os religiosos se juntem, praticando as virtudes cristãs. Isso é inconcebível tirania, que só pode ocorrer no México e há oitenta anos em Portugal.

E depois fala-nos em amor e em carinho e em costumes brandos e nessas costumadas banalidades de enganar papalvos.

Quem lhes desse a todos com um gato morto. Até o gato miar, ou miarem eles.”

E por hoje ficamos por aqui.


Crónica publicada no jornal de Barcelos de 21 – 3 – 1996

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Há muita gente que teme as transformações, sejam elas quais forem, tal como teme as mudanças, as revoluções (pacíficas), as novidades.

Também este pequeno lugar que Bouçó se chama e que continuo a considerar o meu berço, sofreu já, “no seu seio”, como diziam os românticos, profundas alterações, com o seu cortejo de benefícios e malefícios também.

A primeira e a mais acentuada foi há mais de um século, com o traçado da via férrea, chamado de “Ramal de Braga”, a qual cortou o lugar em dois e, pior ainda, cortou já a vida de várias pessoas, quer na célebre tragédia de 1916, quando ali perto um vagão desatrelado e carregado de pólvora e outros materiais perigosos explodiu, abalando casas e pessoas, quer na passagem de nível de Bouçó, felizmente agora sem utilização obrigatória, porque a recente estrada camarária disso defende.

Esta estrada que, tal como a via férrea, cortou campos produtivos e, consequentemente, o lugar de Bouçó, dividido agora em três pedaços. E se a estrada trouxe benefícios (ninguém o nega) também trouxe malefícios. Não me estou a referir a ter retalhado o lugar de Bouçó, nem tão pouco à insegurança que a velocidade desajustada de certos veículos que por aqui passam, possa causar. São perigos que cada um pode evitar em relação a si próprio.

Refiro-me a outro tipo de malefícios, a que aliás, já aqui aludi, e que, a exemplo do que se passa a nível mundial, nunca é demais insistir: os perigos da poluição, que a falta de regras e de vigilância desencadeiam por vezes, com gravíssimas consequências.

E, mesmo que não achem a propósito, eu insisto, porque não me estou a referir à poluição dos escapes das viaturas, embora esta seja bem nociva também, só que os venenos estão em relação direta com as quantidades.

Estou a referir-me à poluição que os meios de comunicação rodoviária proporcionam, ao proporcionarem a instalação de empreendimentos poluentes, porque instalados longe das vistas e sem outro objectivo que não seja o do lucro imediato, a custo seja do que for, obra desses modernos criminosos (ou pecadores, a quem o Papa já apontou o dedo acusador), que nos assustam, que assustam o mundo. E há-os de todos os níveis. Os que poluem os grandes rios, como o Vouga ou o Cávado, ou ainda o pobre do pequeno Este que em Cambeses passa a par da linha e a par da velha estrada, que de Braga vem, quase sempre a seu lado. Rios de grande ou pequeno curso. Poucos escapam e todos se sentem ameaçados.

Como ameaçados se sentem os fios de água que no subsolo de Bouçó correm limpidamente para alimentarem a fonte, o ribeiro e os pequenos poços que dão vida às pessoas, animais e plantas.

Já aqui falei deste receio que Bouçó começa a viver. Oxalá não volte a falar no assunto. E muito menos a falar de algo muito grave, que por hora apenas se teme e ainda se pode evitar perfeitamente. Eu quero querer que o perigo vai ser evitado.



Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 1-7-1996