quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Mal extintos que são os ecos de um carnaval que, em Cambeses, quase passa despercebido, já a freguesia se prepara afanosamente para participar das solenidades religiosas que, no primeiro domingo da Quaresma, invariavelmente têm sempre lugar, as quais culminam com a procissão do Senhor dos Passos, culto este cujas origens se perdem nos séculos.

E é sobretudo o aspeto religioso que mais atrai a multidão, já que, como é sabido, não se trata de uma festa popular com foguetes e música de discoteca ou dita popular.

Bem ao contrário, se há música, porque há banda, essa é clássica e melancólica, convidando à meditação, bem como a música gravada que agora se faz também ouvir, a anteceder as solenidades. E há também o cântico magoado da Verónica que, a espaços, e enquanto a procissão sobe o escadório, se espalha no ar, escutada por uma multidão expectante, cujo silêncio é cortado pelas profundas e espaçadas badaladas do lendário sino grande da igreja matriz.

Embora a presença de sacerdotes, sobretudo do Pregador, seja indispensável e importante, como é óbvio, todo este ritual religioso é fruto do trabalho de uma confraria centenária, cujos estatutos são escrupulosamente seguidos pelos irmãos da confraria do Senhor dos Passos, Irmãos que nunca rejeitam responsabilidades inerentes à condição, a não ser que motivos de força maior a isso obriguem.

Trabalho intenso de um ano, é sobretudo o daquele irmão que preside à comissão obreira e que, em linguagem local, é denominado por “O que faz os Passos” e é esse sentido do dever moral assumido com total despojamento dos interesses pessoais, vaidadezinhas e prepotências, que eu quero, com todo o respeito, aqui salientar, porque são atitudes destas, em tarefas tão especiais, que dignificam um povo, neste caso, a freguesia.

Não me foi possível anda saber em que ano teve lugar a primeira evocação da Paixão. Suponho que no início de 1600, já que a capela do Bom Jesus data de 1678 e a primeira Procissão dos Passos em Portugal teve lugar em Lisboa, em 1587, na freguesia da Graça, logo sendo instituída em Braga. A partir daí deu-se a sua expansão por terras do Norte, nomeadamente pelo actual concelho de Barcelos. Mas julgo poder afirmar que sendo um tipo de solenidades tão em uso em terras daqui, nenhuma freguesia possuirá, julgo eu, para a procissão dos Passos, um percurso de Via Sacra tão empolgante como este, não só pelo espeto arquitectónico do seu calvário, de elegante escadório, e bonitas capelinhas, como também pela situação privilegiada do monte sacro, encimada pela tri-centenária capela do Bom Jesus.

Dramaturgia da Paixão, intensamente vivida por todos quantos a Cambeses acorrem, ela é fruto da persistência e serenidade com que a confraria, cujo “presidente”, se assim se lhe pode chamar, é substituído por um outro que, auxiliado pelos irmãos, tudo faz para que resulte. De facto nada aqui acontece por acaso ou de improviso. O programa pré-estabelecido cumpre-se sem uma falha, um percalço, porque todos os irmãos, respeitando as hierarquias, que em cada ano se determinam, assumem com dignidade e entusiasmo as funções que lhes são atribuídas.

Por tudo isto não posso deixar de relevar esse espeto muito positivo da população de Cambeses, o qual traduz, não só forte sentido de religiosidade, vivida dessa forma, mas também o sentido do dever, o respeito pelas leis ancestrais, e o saber cumprir a sua missão com verticalidade, honra e humildade autêntica, aquela que é sinónimo de grandeza.

Sem comentários:

Enviar um comentário