segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Não sei como falar de Cambeses, tendo na ideia toda esta paisagem humana que os sentidos captam, todo este permanente baloiçar entre o entusiasmo da renovação que, de forma por vezes agressiva, se processa em muitos pontos da população rural e a melancolia do tradicional.

Não se trata porém de saudosismo nem desejo utópico de regresso ao passado, esse passado ainda recente, cujos aspectos positivos se opunham aos outros, os considerados negativos, tal como a escassez de bens materiais se opõe à exibição clara e, quantas vezes, forçada, de uma abastança que nem sempre é real. E não sendo real, será necessariamente dolorosa, com o seu cortejo de competições mesquinhas, ansiedade, angústias. Não é também uma visão romântica do passado, é apenas uma evocação no confronto com o presente, cujo mérito será talvez levar-nos a reflectir sobre ele.


Naquele tempo, nenhum écran de televisão os perturbava ou induzia a consumir produtos embalados em vistosas e coloridas caixas. Nenhuma imagem os incitava à imitação sem lhes dar tempo a reflectir. Iam às feiras mais próximas, observavam os produtos expostos e, sobre a sua aquisição, reflectiam devagar, sem o perigo de seduções e tentações. Cumpriam contratos e assumiam compromissos sem receio de burlas, precipitações, mal entendidos.

Eles tinham tempo para falar, pensar, tempo para resolver as situações. Eles tinham muito tempo, porque “o tempo, diziam, dava-o Deus de graça”. E porque tinham muito tempo, sobretudo quando as noites eram longas e frias, possuíam uma sabedoria usada e ensinada com a simplicidade que lhes permitia entregarem-se à alegria ou tristeza, sem prejuízo da sua firmeza de ânimo. Não falavam de honra. Assumiam-na. Não diziam palavras de paz e justiça. Viviam-nas.

Muitos, sobretudo os homens, sabiam ler, conheciam algumas das leis que em Lisboa se faziam, mas a população procedia segundo esquemas estabelecidos por longínquos antepassados. Por isso não sentiam necessidade de muitas leis, nem de um estado poderoso. O que se passava em Lisboa era como se não dissesse respeito à aldeia. À aldeia diziam respeito, isso sim, essas leis que eram reflexo de vivências aprendidas nas lonjuras do tempo e onde o respeito pelo seu semelhante estava em todas elas. E se alguém não cumpria essas leis era punido, não só pelas leis emanadas de Lisboa, que em Barcelos se executavam, mas também pela sanção moral que era a perda de confiança por parte da comunidade, o desprezo, o ostracismo a que daí em diante seria votado. Era a desonra como um labéu, gravado na fronte a ferro e fogo, e transmitida a seus descendentes.

Mas os que cumpriam podiam dormir em paz, dançar alegremente em terreiros de romaria e viver cada festa, cada solenidade religiosa, gota a gota, como quem apreciava um vinho antigo. Podiam entregar-se às festas de romaria porque eram suas. Por isso eram participantes, e não meros espectadores, como agora acontece, preocupados mais em se mostrarem, em parecerem, do que serem com autenticidade, mercê dos falsos progressos mentais em que muitos se apoiam, os quais alteram o humor, adulteram-lhe os gestos, condicionam-nos.

É sabido que todas as sociedades têm as suas épocas de transformação mais acelerada e que essa situação gera por vezes desarmonia. No entanto o equilíbrio tem sido sempre ou quase sempre reencontrado. Esperemos que agora também assim aconteça.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 28-5-1992

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