segunda-feira, 25 de julho de 2016

Ao falar do que é o actual nível de vida em Cambeses, não posso deixar de ter presente Cambeses de outrora e a quase violência do seu ingresso no universo turbilhante da vida moderna.

Por toda esta região se assiste, e Cambeses não é exceção, a uma exterior mudança comportamental que tem por base a ascenção de uma classe de raízes profundamente rurais que, de súbito, se vê guindada a uma outra - a de trabalhador não rural, operário em grande parte, que de imediato adota outro comportamento, outras referências, e adquire outros valores.

E esta mudança seria óptima, já que longe está essa época aqui referida como época de escasso trabalho, escassa “roupa de agasalho”. Portanto essa ascenção, se assim se lhe pode chamar, seria óptima. Seria mas não é, lamentavelmente.

Basta determo-nos no espeto cultural desta classe vinda sobretudo de famílias de muito escassos recursos financeiros e que de súbito se vê a braços com um maior poder de compra, mas indefesa perante o assalto das “mil imagens da publicidade” cujo brilho a ofusca, deixando-se arrastar pela onda de consumismo, que a ameaça submergir irremediavelmente.

E assim, tomada de um consequente desejo de ostentação, cujo nível máximo é, depois da motorizada, o carro, vão os mais novos voltar a pegar em livros relacionados com o código da estrada, que o exame é puxado, e por essa leitura se ficam.

Tirada a carta, procuram obter um carro, com o apoio da família, um carro o mais espectacular possível, espartilhando, para o efeito, até ao extremo limite, as finanças do agregado familiar.

De posse do carro atiram-se à estrada, pelas tardes de domingo, passeiam. Continuam porém a desconhecer a existência de museus e monumentos, nada sabem da história do seu concelho e ignoram atos culturais. Mas sabem, isso sim, o nome de restaurantes, churrasqueiras e cafés.

Os mais jovens correm a namoriscar, não por romarias e terreiros, à luz do sol, como faziam os seus pais e avós, mas antes na semiobscuridade de uma dessas discotecas apressadamente construídas, de discutíveis condições de segurança e conforto, quase sempre em locais mais ou menos ermos, perto da estrada. E aí, durante horas, sofrem no corpo o desgaste que a poluição sonora, o tabaco e até o álcool, quando não outros males maiores, provocam.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 
9-7-92

Ignorantes dos benefícios do sol, que desprezam, nessas tardes domingueiras, se prejudicam a saúde do corpo, a do espírito é igualmente atingida porque traz como consequência o stress, as angústias, as insatisfações. Mas a culpa não é só deles, convenhamos. Foram apanhados de surpresa, assediados por toda a castra de publicidade que lhes cobiça os escudos, seduzidos pelo écran de televisão e pelo vídeo que começam a comprar também, porque outros compraram já. E quase sem dar por isso entram em competitividades mesquinhas, em ostentações de uma abastança que por vezes não corresponde ao real. Mas a culpa não é só deles. A educação de um povo é sempre demorada e difícil, se não for prevenida a tempo. E quando, como acontece agora, o corte abrupto com as leis ancestrais se dá, o seu comportamento altera-se, e quantas vezes entra em desequilíbrios, porque as raízes foram abaladas. Essas raízes que fundo mergulhavam na terra dos seus antepassados e lhes permitiam resistir a todos os ventos adversos e os mantinham aprumados com autenticidade, firmeza e harmonia.

domingo, 24 de julho de 2016

Hesitei bastante antes de aflorar o assunto que constituirá esta minha crónica. Hesitei bastante, por vários motivos, mas hoje, ao ler uma notícia de que, em Braga, iriam ser tomadas diversas medidas no sentido de disciplinar a atuação dos vendedores ambulantes durante as solenidades da Semana Santa, não resisti e, por isso, vou aqui falar do que observei em dia de Passos, porque possivelmente o mesmo terá acontecido durante as solenidades dos Passos na cidade de Barcelos, e acontecerá também noutras localidades onde essas solenidades têm lugar, e que é o fenómeno proliferante da venda ambulante.

Nada tenho contra os vendedores ambulantes, cuja vida, por vezes, é bem dura, e a sua atuação nada teria de grave se não constituísse, a meu ver, profanação de um espaço que, em princípio devia ser espaço de reflexão, de religiosidade, de silêncio até. Mas o que se observava ao longo dos diferentes acessos ao Santuário era uma insólita feira dos mais diversos artigos, desde cutelarias a roupa interior, desde loiças a ferramentas e, como se isso não bastasse, havia também a venda de cassetes e a música, que se fazia ouvir, a par dos pregões que, em locais assim sempre acontece, e nada tinham a ver com a música sacra que a ocasião exigia.

Antes de continuar, devo dizer que, neste grupo de vendedores ambulantes, não incluo as vendedoras de regueifa e de doces, presença tão tradicional em todas as festividades, porque essas sempre foram mulheres discretas, respeitadoras da hora e local, cuja presença sem alaridos em nada perturba o ambiente de religiosidade histórica que se pretende viver. Ambiente de religiosidade vivida através da dramaturgia da paixão, ao qual toda a freguesia se devotou, e bem notório era o empenho dos homens, o seu sentido de responsabilidade porque mais solicitados para o momento, sem esquecer as mulheres, mais na sombra, mas igualmente ativas.

Julgo não exagerar, se disser que toda a freguesia estava ali porque aqueles que, por qualquer motivo, não puderam subir até à igreja, sem dúvida que acompanharam, das suas casas, o sermão transmitido por amplificação sonora, e escutaram os sons potentes dos instrumentos musicais, bem como o dobrar plangente do sino grande, e ainda o cântico que, na voz bonita da Verónica, se elevava por cima da multidão. Uma voz segura e tão bem modelada que se diria ter estudado canto, essa voz de uma jovem de Cambeses.

Igualmente todos aqueles que participaram na Procissão evocando diversas figuras bíblicas, e que não eram só crianças, como antigamente, mas também adultos, os quais impressionavam profundamente quem assistia ao desfilar da Procissão e muitas centenas eram os vindos de longe, a ajuizar pelas inúmeras viaturas que juncavam bermas de estradas e caminhos, ocupando todos os espaços onde era possível estacionar e que ali vieram atraídos pela fama de algo de que Cambeses se poderia orgulhar.

Mas a fama é moeda de duas faces, e onde há multidão há possibilidade de negócios, lucros, e aconteceu que o desejo de lucro atraiu vendedores cuja profissão respeito. Mas os locais de venda deveriam ser outros, mais distantes do espaço que, em princípio não deveria ser perturbado com atuações profanas, um espaço destinado exclusivamente às solenidades evocativas da paixão de Jesus Cristo, esse mesmo que um dia expulsou do Templo, com indignação, os vendedores que ali faziam seus negócios.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 8-4-93

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Há palavras e expressões que, de tanto serem usadas, perdem a sua força, a sua acutilância e, pura e simplesmente embotam, tornam-se inúteis.

Há assuntos que, de tanto se falar neles, endurecem os ouvidos de quem tinha por obrigação escutá-los, tornando-se assim inútil a persistência de alguns que, tendo sensibilidade e senso moral, se preocupam com o seu semelhante e, sobretudo, com o destino das gerações vindouras.

E tudo isto vem a propósito de uma surpresa que, sem querer cair no exagero, me deslumbrou, posso afirmá-lo. Foi ali, nos arredores de Braga, mais precisamente em Palmeira, ao termos tido o privilégio de nos ser franqueada uma visita ao interior do palácio, antigo Paço, onde os dignitários eclesiásticos encontravam o necessário repouso.

Edifício bem conservado, fiel à traça barroca inicial, guarda no seu interior magnífico conjunto de obras de arte, sabiamente restauradas, e expostas aos olhos de quem ali chega para as admirar, e que vai desde móveis de arte portuguesa e quadros, aos tapetes e objectos de adorno. Gentilmente ciceronados, tudo pudemos vagarosamente admirar. 
Depois foi o convite a um passeio pelos jardins e arruamentos, cuja traça continua igualmente fiel à arquitectura inicial. E assim transpusemos a porta em direcção ao exterior, guardando na memória, emotivamente, todo esse conjunto de obras de arte, das quais a posse de um dos mais singelos objectos nos tornaria felizes.

E foi então que a surpresa aconteceu e nos deslumbrou: o RIO. O rio até onde os jardins desciam. Um rio largo, manso, translúcido, senhor de peixes e frescas margens: o Cávado.

E a surpresa foi tal que todas as imagens dos objectos de arte que a memória afectiva trazia consigo, desapareceram para dar lugar à visão paradisíaca, rara, de um largo rio transparente, cristalino e saudável como aquele.

E a pergunta vai inevitável, a acordar laivos de uma revolta inútil: - Como foi possível, em tão poucos anos, e depois do triste exemplo do Ave, permitir-se que, um pouco mais abaixo desse lugar paradisíaco, o curso desse rio se tornasse naquilo que em Barcelos também se chama Cávado, e cujo aspeto dispensa, por tão evidente, qualquer sombrio adjectivo? Pergunta sem resposta, porque parece não haver quem queira ou possa responder.

Por isso deixei o Rio, rara visão de que meus olhos não se queriam apartar, calando as interrogações, as recriminações dirigidas sobretudo a quem, tendo o poder na mão, nada fez para evitar o desastre destas águas.

E agora? Vão deixar que aconteça o mesmo às fontes e poços e regatos de cada uma das muitas freguesias de Barcelos?

A Fatura do rio Cávado aí está para se pagar. O preço, todos o imaginam, e é bem alto já. Vamos esperar calmamente, indiferentes, que outras faturas mais pequenas, mas igualmente difíceis de pagar, surjam em cada freguesia, em cada lugar, em cada campo do Concelho?

“Há assuntos que, de tanto falar neles, endurecem os ouvidos de quem os poderia escutar”… Eu sei. No entanto, neste mesmo jornal, várias são as vozes que, em defesa da Água se erguem. Neste e noutros lugares.

Será que ainda há lugar para a esperança?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 10-6-93

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Na minha última crónica citei um episódio onde alguém, lá para o sul, se referiu a Barcelos focando apenas aspectos menos positivos, embora houvesse uma certa verdade naquilo que foi afirmado.

Hoje porém, vou falar de algo mais agradável porque, por uma associação de ideias, me lembrei de um outro episódio e, consequentemente, de um outro interlocutor que, ao saber que eu era de Barcelos, logo me falou entusiasmado da cidade que disse conhecer.

Tratava-se de um jovem professor universitário suíço, que encontrei em Nápoles, num congresso em que se falava de Portugal, como já aqui referi, e que me surpreendeu ao referir-se, num português com alguma mistura de italiano e espanhol, à nossa cidade, onde tinha estado, segundo ele, num casamento (mais não explicou).

E falando da cidade, das ruas medievas, das gentes que ele achou simpáticas e afáveis, falou-me também dos nossos barros e de alguns momentos da História relacionados com Barcelos, que surpreendentemente mostrou conhecer, e acabou por me dizer que o que mais o impressionou em Barcelos (num domingo) foi uma enorme praça arborizada, quadrangular, rodeada de belos edifícios, pouco ou nada adulterados, e também por espaços ajardinados. E foi mais longe: disse que, para ele, devia ser a maior praça da Europa. Estava a referir-se, como adivinharam já, ao belo e bem arquitectado Campo da Feira.

Claro que houve alguém que logo o contradisse, afirmando que a maior praça da Europa se situava em Bordéus. Mas, seja como for, gostei de assim ouvir falar da minha terra e, por isso, tentei explicar-lhe que aquela vasta praça dominical, possivelmente silenciosa, seria a seus olhos uma outra bem diferente, palpitante de vida, se acaso ele a observasse numa quinta-feira.

E perante a sua atenção, e de outros que faziam parte do grupo, não resisti a falar do espectáculo borbulhante de vida que é a feira semanal, e da sensação que é andar no meio da multidão, sentir o cheiro da terra, e a frescura da fruta natural e pura (não calibrada); escutar o linguajar das gentes, observar o gesto contido de quem, vindo das aldeias, ali se mantém, paciente e atento, determinado e disposto a vender o melhor possível os produtos da sua horta ou capoeira, ou do seu artesanato.

Não sei se alguns dos que então me escutaram vieram já visitar Barcelos das quintas-feiras. Mas estou em querer que sim; que alguns já vieram e outros virão para demorar o olhar nesse quadro arborizado, autêntico e espontâneo, que pouco terá a ver com as tão discutidas directrizes da Europa para a agricultura e outras coisas que tais, e por isso mesmo deslumbra a quem não pensa apenas em “Euros”.

Tal como a grande praça, rodeada de edifícios de pouca altura, deslumbrou numa tarde de domingo um jovem professor, de uma qualquer universidade suíça.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos 

terça-feira, 19 de julho de 2016

Hoje, ao iniciar este artigo, veio-me de súbito à lembrança, a emoção que inesperadamente senti em Gent, cidade da Bélgica, ao deparar com um pergaminho velho, de mais de 800 anos, e que sendo cópia de um outro, datado de 1085 – 1089, ali estava diante dos nossos olhos, vindo dos “confins da Idade Média”, ou mais propriamente de meados do séc. XI, e era o Censual de entre Lima-e-Ave, do Bispo D. Pedro. Estava integrado numa das exposições que constituíam esse festival que foi orgulho de todos os portugueses que o visitaram e se chamou “Europália”.

Nesse manuscrito, em letra carolíngia, sobre pergaminho, havia uma extensa lista de terras situada entre o rio Ave e o Lima, e muitos eram os visitantes estrangeiros que sobre ele demoravam o olhar, embora não conhecessem, muito possivelmente, a língua em que essas palavras estavam escritas. Palavras em grande parte legíveis, não só porque do nome de terras nossas conhecidas se tratava, mas também porque estavam ao alcance dos nossos olhos. Outras porém estavam ocultas porque parte desse longo pergaminho estava enrolada. Entre esses nomes estaria Cambeses, ou melhor, estava Cambeses.

E digo “estava” porque, como se sabe, Cambeses existia já quando os pais de D. Afonso Henriques se tornaram senhores dessas terras. Se assim não fosse, D. Afonso Henriques não poderia ter doado Cambeses ao Arcebispo D. Paio Mendes, em maio de 1128. Daí poder dizer-se, sem pecado de exagero, que Cambeses é mais antiga que a própria nacionalidade, porque quando da fundação do reino, Cambeses seria já terra povoada, com o seu “modus vivendi”, as suas leis, leis que obviamente seriam alteradas com a passagem a couto da Sé de Braga. E tudo leva a crer que Cambeses, apesar de algumas vicissitudes, sobretudo no século XIV, a que poucas terras escaparam, soube conservar, ao longo dos séculos, uma boa qualidade de vida.

E falar dessa qualidade de vida no passado é, fatalmente, evocar a qualidade de vida do presente. E quanto a esta, apesar da escola com todos os requisitos modernos, há pouco inaugurada, apesar dos bens materiais largamente ostentados por uns quantos, e das mais diversas formas, por oposição àqueles que se empenham em manter viva a sua cultura ancestral (um exemplo bem vivo é o funcionamento ativo da Confraria do Senhor dos Passos), a pergunta fica no ar: - como é, na realidade, a actual qualidade de vida em Cambeses?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 16-7-92

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Não vou perder tempo a lamentar a passada qualidade de vida, já neste século, em Cambeses, nem responsabilizar quem já não pode ser responsabilizado pelo estado de letargia em que Cambeses, até há bem pouco tempo, viveu. Não o faço por duas razões. A primeira é por conhecer a inutilidade de se “chorar sobre o leite derramado” e a segunda é por não se verificar já, felizmente, esse estado letárgico em que durante tanto tempo Cambeses viveu, porque abandonado pelo Poder.
Uma aldeia sem luz eléctrica, sem nenhum telefone, com uma estrada intransitável, por onde raros automóveis se aventuravam. Não fora a passagem certa dos comboios e nenhum sinal de progresso ali haveria, a não ser a centenária escola.

Mas sem querer cair em sentimentalismos piegas nem em bucolismos românticos, não posso deixar de evocar, com uma certa emoção o “modus vivendi” da população de então e de me colocar muitas interrogações quanto ao de agora.

Nessa época, era escasso o trabalho, escasso o pão, escassas as roupas. Os casos de extrema miséria, por uma razão ou por outra, existiam em Cambeses, tal como noutras terras. Os pobres e os remediados – porque ricos, não os havia – viviam cada hora do dia com dignidade, sem merecerem o apodo de infelizes ou desgraçados, porque os produtos da terra - do milho ao linho, das hortas à lã das ovelhas – satisfaziam os pequenos apetites da comunidade.

Não sabiam da existência de batatas fritas em pacote, mas sim das batatas cozidas e por eles cultivadas. Não sabiam da existência de gelados e margarinas, mas sim de ovos frescos e do leite que as cabras, e uma ou outra vaca, sempre ia dando. Comer regueifa era uma festa, comer boroa sinal de fartura. Não sabiam igualmente da existência das bananas e do ananás, mas sim da fruta colhida e quanta vez sorripiada, a partir das primeiras cerejas bravas das altas cerejeiras, às últimas castanhas apanhadas em novembro, pouco antes das primeiras ácidas laranjas que dezembro sempre trazia.

E porque assim era, e de outro jeito agora é, as interrogações continuam vivas acerca do que há neste quadro de vantajoso ou inútil, saudável ou prejudicial, certo ou errado.

Quem responderá?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 18-6-1992

sábado, 16 de julho de 2016


O Monte de Santo André, em Cambeses, talvez pela sua vertente voltada a norte, nunca foi procurado por quem tencionasse construir a sua casa de habitação. No entanto, e ao que me contam, eram muito utilizados os caminhos que levavam a Braga e outras localidades, caminhos úteis para quem não queria ou não podia atravessar o pequeno e bonito rio Este, que no inverno se tornava, por vezes, tão poderoso e ameaçador que era quase impossível atravessá-lo.

É desse monte portanto que se avista grande parte da freguesia, agradável de contemplar ainda hoje, se se conseguir ignorar o infeliz rio Este, que a incúria de todos nós deixou assassinar. E é igualmente um prazer passear pelos caminhos tranquilos do Monte e dali contemplar Cambeses, do alto do Monte do Bom Jesus até à estrada que o separa das veigas da beira-rio, agora ricas de folhagem para as vacas turinas, ricas de pujantes milheirais. E olhando-se todo esse cenário de casas afogadas em verdura, imagina-se ver ainda os bois possantes, amarelos, puxando carros pesados ou ruminando nas cortes sob as casas.

Bois amarelos já quase não existem, julgo eu. Carros de bois, esses talvez haja ainda, mas praticamente já não funcionam, tal como os arados que enferrujam num canto qualquer, a par da grade e da arabeça.

Hoje, fala-se muito de cultura regional, de etnografia, antropologia. E falam os pessimistas em perda de identidade, adulteração de costumes e outras coisas mais que as mudanças sempre trazem. De facto a mudança, a nível das aldeias, é por vezes muito acelerada, quase radical. Quem saberá, daqui a uns anos, o que é um arado de ferro ou uma arabeça? E um jugo rendilhado? Quantas rocas haverá ainda na freguesia? E esses teares manuais onde se teciam mantas e peças de linho? E no que respeita à música? Havia quem, em Cambeses, tocasse viola, violino, flauta, cavaquinho talvez. Onde param esses instrumentos musicais que, em conjunto, numa tuna, alegraram as novenas do Menino? Muitas outras peças haverá, cujos possuidores talvez não se importassem de as oferecer para museu, porque aí ficariam mais protegidas e expostas à admiração dos visitantes.

Freguesias há, nomeadamente no Concelho, que já criaram o seu pequeno museu, pertença da comunidade. Porque não há de Cambeses criar o seu, se tem gente capaz de, por amor à sua terra, dar vida a um qualquer projecto do género? Por isso mesmo voltei a falar aqui da ideia de se criar em Cambeses esse espaço, onde se possa instalar um pequeno museu etnográfico para que, como é lógico, os que vierem depois, numa época que será, muito provavelmente, ainda mais computorizada que a actual, saibam como viviam os seus antepassados.

E destes testemunhos materiais recolham imagens, que serão exemplo moralizador de como era possível viver-se assim, um tipo de vida difícil e trabalhosa, mas digna, autêntica, corajosa. Uma qualidade de vida aceite pela população sem prejuízo da sua firmeza de ânimo, da sua dignidade, da sua alegria de viver


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 11-6-1992

sexta-feira, 15 de julho de 2016

DAQUI DE CAMBESES

Já aqui falei do rio Este, da sua decadência e morte, essa mesma morte que ameaça o Cávado da minha clara lembrança, quando alvoroçada ia de Cambeses à cidade e nele podia pousar o olhar.
De facto, nas poucas vezes que fui a Barcelos fora dos dias de feira, duas coisas havia que sempre me deslumbravam: as vetustas paredes dos Paços dos Condes–Duques debruçadas sobre a placidez das águas e esse rio que então era claro, translúcido, belo.
Não sei a razão dessa minha predisposição ao deslumbramento, sei que era algo vindo de muito longe e sei também que não era sem uma curiosidade emocionada que me aproximava dele, esse rio calado, translúcido, a deslizar brandamente poderoso, senhor de uma força inexplicável que me atraía. Densa e misteriosa força a irradiar das águas, que por entre várzeas frescas e produtivas, saltava alegremente os açudes na pressa de ver as terras de Esposende, onde chegam as marés e os voos planados das gaivotas.
Um rio que era promessa de fresco banho na piscina natural, onde aprendiam a nadar aqueles que facilmente ali se podiam deslocar em dias estivais, os rapazes evidentemente, que às meninas estava vedada tal satisfação, sobretudo se pertenciam a famílias mais tradicionais.
Mas o rio, se era a interdição, era também a sedução, o fascínio, o mistério, numa forma imprecisa de o contemplar, de nele repousar o olhar, embora Barcelos não perdesse tempo, creio, a contemplar o curso remançoso do rio, como acontece com outras povoações ribeirinhas. Parecia mesmo que Barcelos vivia de costas voltadas para ele, como se fosse uma outra cidade.
E deste modo a cidade, que pouca importância parecia dar ao seu rio, quando finalmente se quedou a olhá-lo, foi para constatar, estupefacta, que os homens tinham fixado a atenção nele, não para lhe repousar o olhar, mas sim para lhe infligir cruel e cobarde agressão, porque rio indefeso. Crime só possível porque a imprudência e desleixo de uns quantos permitiu que se concretizassem os propósitos de alguns em quererem enriquecer de qualquer modo e o mais depressa possível.
E por isso o claro e translúcido rio da minha lembrança adoeceu e, moribundo, não tardará a morrer tal como morreram já o Este, o Ave, o Leça e outros mais, tal como podem morrer as fontes das nossas aldeias, as minas de água que no subsolo correm e são razão de vida dos homens e dos animais, os pequenos regatos, alguns deles igualmente ameaçados com projectos industriais sempre poluentes, embora de início se apregoe o contrário.
E tudo isto acontece porque as Leis ainda não têm força suficiente para conter tal onda de crimes e também porque a ignorância e ganância de alguns permite que isto aconteça.
Mas, até quando?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 2-7-1992

quinta-feira, 14 de julho de 2016

DAQUI, DE CAMBESES


Ao tentar reconstituir a História desta terra que já se chamava Cambeses antes do nosso primeiro rei se chamar Afonso, ao tentar reconstituir a sua vida, ao longo de séculos, de uma coisa não temos dúvida: - que foi terra poderosa se tivermos a coragem de a comparar com a aldeia rural da primeira metade deste século, uma aldeia cheia de privações e carências de toda a ordem.

Terra de tal modo abandonada pelo poder, que os habitantes diziam, por chalaça, que a Câmara se tinha afogado debaixo da ponte e que já não existia, pelo menos para a freguesia de Cambeses.

Hoje o panorama é diferente do princípio do século, apesar de nessa altura existir já uma estrada a atravessar a freguesia, uma linha de caminho-de-ferro e uma escola. Mas a estrada desse tempo, que levou a completar mais de 70 anos a completar, só em 1972 se pode considerar uma estrada minimamente aceitável.

Quanto ao caminho-de-ferro, quando ele aqui chegou, foi apenas para cortar campos produtivos, demolir muros, fazer trincheiras e aterros que desfiguraram a paisagem sem que os seus habitantes lucrassem visivelmente com tais sinais de progresso. Só mais tarde os representantes do povo viram os seus esforços coroados de êxito com a criação do apeadeiro, num lugar onde a estrada atravessa a linha e onde, desde então, sempre houve guarda da passagem de nível. Por uma curiosa coincidência, o lugar onde se situa o apeadeiro já se chamava “lugar da guarda” muito antes de a freguesia sonhar com a estrada e muito menos com o comboio. Talvez o topónimo “guarda” esteja relacionado com o funcionamento da administração do Couto. Não sei.

Sei, isso sim, que Cambeses é hoje uma terra regularmente servida por transportes ferroviários, que a população largamente aproveita para se deslocar aos seus empregos, nas cidades mais próximas ou, no que diz respeito à população mais jovem, para frequentar estabelecimentos de ensino. Quanto ao ensino primário, tem como se sabe, uma escola moderna, com capacidade, segundo julgo saber, para o triplo dos alunos que, como em toda a parte do país, cada vez são menos. Tem estradas pelo interior da freguesia, novas, embora de traçado irregular, com lombas e curvas que poderiam talvez ser atenuadas, se tivesse havido uma maior fiscalização e cuidado na construção das mesmas. Acabaram-se as fontes de mergulho na quase totalidade, e as suas águas continuam, milagrosamente, a ser boas.

Daqui se conclui que, em alguns aspectos, a qualidade de vida melhorou espectacularmente em Cambeses. Aspectos materiais, sobretudo. Mas, e os outros valores?

De entre eles, atrevo-me a perguntar pelos valores espirituais (não os religiosos, porque estes me ultrapassam) valores que vemos cultivarem-se em muitas freguesias do Concelho e que são remédio para a ameaça do individualismo a que muitas terras estão condenadas, valores espirituais como sejam as diferentes formas de arte e cultura.

Não há um grupo etnográfico, nem coral (à exceção do que atua, e muito bem, nos atos de culto da igreja paroquial). Nem grupo de teatro, nem uma biblioteca, por pequena que seja. Nem, o que é importante, um simples centro paroquial, de convívio, que pudesse atenuar esse individualismo frio, materializado e exibicionista, porque negativamente competitivo, que domina a actual civilização e à qual Cambeses, como muitas outras aldeias, começa a entregar-se.

Porquê esta passividade?

Publicada no jornal de Barcelos em 14-7-1992