terça-feira, 13 de setembro de 2016

Barcelos era, para quem naquele tempo vivia em Cambeses, uma cidade distante, quase desconhecida, mítica.
Barcelos era o poder, a lei, a justiça. Barcelos era o lugar onde os mancebos iam à inspecção militar e os homens à revista da caderneta. Barcelos era tudo isso e era o lugar onde se iam tirar certidões. E era também o lugar onde estava a autoridade representada na farda dos soldados da GNR que por vezes, em visita de rotina, víamos passar a caminho da casa do regedor. Barcelos era o tribunal com que ouvíamos ameaçar os suspeitos de crime de roubo ou difamação. O tribunal que julgava disputas de terras e águas, desacordos em partilhas, zaragatas. Barcelos, em suma, era a Lei que protegia e a que obrigava a pagar a “décima”, impostos sobre carros de bois, multas. E era também o lugar onde as crianças, de roupa nova e sapatos a estrear, faziam o exame da quarta classe. Luxos que quase esqueciam ao serem colocadas perante um júri que atemorizava aqueles indefesos de 10 ou 11 anos, subitamente arrancados aos horizontes limitados da aldeia.
Barcelos era pois um lugar temido perante um júri tão severo que até a própria professora o temia, a ajuizar pelo nervosismo patente nos seus gestos, ao acompanhar silenciosamente, sem nada poder fazer para repor neles o “à vontade” comportamental que nas aulas mantinham.
Tão emocionante como o exame era a permanência naquela escola de linhas modernas, que nada tinha de semelhante à sala adaptada a escola que durante quatro anos frequentáramos. Escola da qual levávamos na lembrança o átrio enorme, a sala enorme, a escadaria como nunca tínhamos visto outra.
Divisões que talvez nem fossem assim tão espaçosas e muito menos sumptuosas, mas que aos nossos olhos indefesos ganhavam uma extraordinária dimensão.
Dimensão idêntica à que a feira semanal ganhava com a loiça de barro, da qual nenhuma casa prescindia, e da loicinha com que todas as meninas gostavam de brincar nas tardes de domingo.
E hoje, Barcelos que significado terá para quem em Cambeses vive? Será sem dúvida o poder, as leis, a justiça, mas não é, com certeza, a cidade distante, mítica, desinteressada, inacessível. São as obras que o provam, e alguns aspectos da sua qualidade de vida também.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 14-5-1992

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