segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Poderá parecer descabido falar aqui de um colóquio que teve como finalidade homenagear Miguel Torga, um escritor transmontano.

Mas embora nada pareça justificar estas linhas num jornal de Barcelos – excluindo evidentemente a dimensão do escritor, que não é só de Trás-os-Montes nem de Portugal mas de todo o mundo, como foi afirmado mais de uma vez pelos oradores - eu vou falar desse colóquio, que teve o seu início no Porto e o seu encerramento em Vila Real, na Universidade de Trás-os-Montes.

Momentos houve, durante o colóquio, dignos de serem aqui referidos, mas apesar disso vou relegá-los para segundo plano, e colocar em primeiro os acontecimentos que, em S. Martinho de Anta, aldeia onde o escritor nasceu e cresceu, tiveram lugar: Ali chegados, com significativo atraso, foi o espanto a primeira sensação que nós, componentes da extensa caravana automóvel, experimentámos ao depararmos com a aldeia em peso, que ali esperara pacientemente e com alegria nos recebia, acompanhada pelos sons festivos de uma banda de música e o estalejar de foguetes.

Espanto maior seria, para os estrangeiros, gente de gabinete e de cidade, para quem aquela cerimónia exuberante tinha o seu quê de insólito, e os deixara atónitos primeiro e deslumbrados depois. E digo “deslumbrados” porque o deslumbramento estava-lhes estampado no rosto, ao incorporarem-se, sem hesitações, no cortejo, à frente do qual a banda de música e os homens da Junta de Freguesia seguiam, em direcção à pequena casa onde Torga nasceu.

E ali, diante dessa casa singela, que Torga nunca quis transformar em casa espectacular - ali, dizia eu, a banda terminou a sua partitura, sob o olhar atento e respeitoso da multidão. Depois foi novamente o desfilar pelas ruas da aldeia até ao largo principal, onde citadinos e rurais, ombreando, se apinharam sob os olhares entusiasmados dos que pejavam as janelas que se abriam para o largo, correspondendo com acenos e sorrisos aos acenos e sorrisos que, sobretudo os estrangeiros, lhes dirigiam, como se todos eles fossem familiares do grande escritor.

Um largo de casas antigas, bem cuidado, tal como o nome de Torga exige, esse largo onde exerceu clínica e onde se patenteou, ao olhar curioso dos visitantes, reconstituído por acção da Junta de Freguesia, com móveis oferecidos por Torga, testemunhos de uma vida vivida verticalmente.

E foi então que a tuna estudantil, que do Porto viera, exteriorizou o seu entusiasmo e, acamaradando com os componentes da banda em improvisadas peças musicais, deu largas à sua natural euforia. E as saudações académicas, soando no largo da aldeia, nada tinham de insólito porque todos, cada um a seu modo, comungavam desse entusiasmo, dessa emoção. E já mais tarde, no edifício novo da escola, uma vez mais a surpresa aconteceu, no Porto de Honra que esperava os visitantes. Não pelo Porto, servido, - que de tantas vezes acontecer a qualquer um daqueles visitantes, quase se banalizara – mas antes porque algo havia ali de diferente. Não no vinho (de óptima qualidade) mas no carinho, esmero e atenção postos em todos os detalhes com que esse Porto foi servido, acompanhado de doces caseiros que – via-se – mãos femininas da aldeia haviam confeccionado, prestando assim colaboração pessoal, inestimável, à junta de freguesia incansável, sobretudo o seu presidente, orgulhoso e feliz.

Depois foram os discursos, os cumprimentos e agradecimentos de parte a parte. Mas o que mais impressionava era o orgulho patente em muitos rostos, sobretudo em alguns elementos da Junta, por sua freguesia estar ligada ao nome de Miguel Torga. E julgo poder afirmar que tinha sobejas razões para isso. Sem querer fazer futurologia, julgo poder afirmar, também, que é uma honra que se irá prolongar por muitas gerações.

Porque o valor de Torga não é efémero, como o de tantos ídolos que, apoiados pelos meios de comunicação, escudados pelo dinheiro, todo o país conhece agora e vai esquecer amanhã. O valor espiritual de Torga está reflectido na obra que ele produziu. E por isso quase se poderá dizer, sem cair no pecado de exagero, ser ele um daqueles homens, citados por Camões, um desses que “…por obras valerosas se vão da lei da morte libertando.”


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 26-6-1994


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