terça-feira, 6 de setembro de 2016

Nessa época, tempo de austeridade e de grandes dificuldades económicas, ir de Cambeses a Barcelos a pé era uma jornada penosa, só executada em última necessidade. E ir de comboio, dada a escassez e precaridade desse único meio de transporte público, era uma odisseia enervante e dispendiosa.

Por isso Cambeses, que dista da sede do seu concelho cerca de uma dúzia de quilómetros, podia considerar-se aldeia longínqua, perdida nos confins do concelho, a confrontar com freguesias de Braga e de Famalicão. Não é portanto de admirar que poucos fossem os contactos entre a freguesia e a sede do concelho, a não ser em caso de obrigação a cumprir na câmara, no grémio ou no tribunal e pouco mais. Até mesmo a feira não era muito procurada para quem tinha gado ou produtos agrícolas para comercializar, já que a de Famalicão, a de Braga, e até mesmo a da Isabelinha, em Viatodos, se apresentavam mais cómodas quanto à deslocação a efectuar.

Tudo mudava, porém, quando se tratava das Cruzes. “Ir às Cruzes a Barcelos!” Uma tentação, uma festa, um desejo. Uma festa em cada ano repetida, sempre igual e sempre diferente. “As Cruzes” simplesmente.

“As Cruzes” daquele tempo, em dia de feira frança, com carros de bois, saias que já começavam a ser de pouco pano, blusas de seda e os mesmos cordões de ouro, as mesmas argolas nas mulheres, igual modo de pentear os cabelos, os mesmos lenços coloridos.

Arejavam-se pois os fatos do dia de festa, gastavam-se algumas economias na branca regueifa ou na trigueira rosca de trigo e centeio que acompanhava com postas de bacalhau frito a alegria das infusas onde o vinho espumava e logo era vertido nas malgas que passavam de mão em mão, na alegria dos reencontros.

Ajustavam-se contratos, namoriscava-se, trincavam-se doces de gema cobertos de açúcar cristalizado, E, se as finanças o permitiam, tomava-se lugar debaixo dos toldos, abancando às compridas mesas, ombro com ombro, onde, ao lado dos pirolitos e laranjadas havia petiscos e, sobretudo, o pipo de vinho, com muitos litros de alegria, para distribuir por centenas de gargantas sequiosas.

Mas mesmo para quem não se deixava tentar por uma ida à Festa, as cruzes tinham um lugar muito importante, porque incluído na calendarização dos hábitos, preceitos e acontecimentos da região, quando assim se marcava o tempo: – “Foi ali pela maré das Cruzes…”, “Foi antes das Cruzes que…”, “As Cruzes já tinham passado há um ror de semanas quando…”.

No tempo das Cruzes faziam-se as últimas vessadas, e iniciava-se nessa época um outro tipo de contrato de trabalho que incluía merenda aos jornaleiros, cláusula que durava até ao S. Miguel. E até uma simples sementeira de melões e melancias se calendarizava pelas Cruzes, porque nessa época deveriam os pequenos caules ter já quatro folhinhas em cruz. Estes e outros preceitos mais, não esquecidos ainda hoje, suponho.

Porque, se muitos hábitos mudaram e o aspeto exterior dos rurais indica melhoria de vida e até um certo aburguesamento, se a alimentação e tarefas agrícolas sofreram profunda alteração, tal como a sofreu o traje feminino e os meios de transporte utilizados para ir à feira, a festa das Cruzes, essa, julgo ser ainda a mesma, na medida em que é motivo de evasão, apetecida acalmia nas corridas a que as novas condições de trabalho obrigam. É o intervalo, a alteração da rotina. Por isso, e segundo creio, “As Cruzes” continuam a ser a radiografia de hábitos e tendências de um povo fiel, apesar de tudo, às suas raízes e a muitas das suas leis ancestrais.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 30-4-1992

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