Nasceu António Fogaça nesta cidade, num desses dias coloridos como aqui o são os dias de maio, mesmo quando o frio vem e a chuva acontece.
Por outro lado, como se de uma
simbologia se tratasse, foi um dia cinzento, porque era outono e chovia,
segundo testemunhos da época, que a sua morte ocorreu, nessa Coimbra que tão
bem o tinha acolhido, alguns anos antes.
Muitas décadas passaram já sobre
estes dois acontecimentos: - o nascimento do poeta; a sua morte. – Uma morte,
aliás, profundamente sentida, porque inesperada e prematura.
Das comemorações do centenário do
seu nascimento se ocupou Barcelos em devido tempo. Comemorações talvez mais
simples do que aquelas com que, nas cidades maiores, por vezes se assinala a
data de nascimento ou morte de alguns dos nossos grandes poetas. Mas se acaso
não foram tão grandiosas, foram, sem dúvida, comemorações imbuídas de uma
grande afetividade.
Aquela afetividade que se tem por
um filho, um irmão. Aquela afetividade que, há cem anos, trouxe Barcelos para a
rua para que o último adeus a um Poeta fosse como os poetas merecem.
Não se pode, pois, afirmar que
António Fogaça seja um grande esquecido. Sê-lo-á do grande público, como aliás
talvez o sejam outros poetas, desde Camões a Bocage, desde Bernardim Ribeiro a
Jorge de Sena.
Não, António Fogaça não tem que
pedir contas a Barcelos porque Barcelos sempre honrou a sua memória, tal como
agora o faz ao evocar desse ano de 1888 o dia em que inesperadamente partiu. E
fá-lo, não com a mesma dor de então, porque o tempo a diluiu, mas com o orgulho
de o saber seu filho.
Está em moda citar Fernando Pessoa
a propósito de tudo e de nada. No entanto, se aqui o vou fazer, não é para
seguir modas, mas sim para referenciar factos que mais não são do que simples
coincidências: - Um é o facto de António Fogaça ter sido batizado no dia 13 de
junho, dia em que, vinte e cinco anos mais tarde, Fernando Pessoa iria nascer,
e o outro é relacionado com o ano de 1888, ano em que Fernando Pessoa nasceu e
António Fogaça morreu.
Quase se diria que a criança
recém-nascida viria cumprir o destino que a António Fogaça não seria permitido
cumprir pois, como se sabe, foi muito limitada no tempo a vida do Poeta que
hoje evocamos, apesar da força e do entusiasmo que a conduziram.
Vida tão limitada que nem teve
tempo de a saborear, de a olhar com atenção.
Fernando Pessoa, esse, sim. Pode
olhar a vida de muitos ângulos, sorvê-la, esbanjá-la pelos cafés e ruas de
Lisboa, meditá-la no silêncio do seu quarto de homem solitário.
A sua obra não se pode, ainda
dimensionar, tão vasta ela se apresenta. Mas, sem dúvida que não teria
alcançado tal grandeza se também ele tivesse morrido, prematuramente, aos vinte
e cinco anos de idade.
Assim, a sua vida, que durou
quarenta e sete anos, apresenta-se-nos densa, misteriosa, insondável, como
insondáveis são os leitos dos rios profundos dos rios profundos e poderosos.
Pelo contrário, de António Fogaça
tudo se sabe, suponho: - a medida da sua oba; os seus gestos; as suas
companhias, a sua vida límpida, como límpidas eram então, as águas deste nosso
Cávado, que ele admirava, na sua “sedutora e múrmura corrente”. Ou desse
Mondego que ele gostava de contemplar, todo entregue à vida romântica da
Coimbra boémia.
Vida que viveu intensamente,
apaixonadamente e, embora empenhado em tirar um curso de Direito, não deixou
de, nessa cidade, continuar aquele itinerário que, como poeta e ainda em verdes
anos, já em Barcelos se lhe anunciava.
Dois poetas irmanados por uma data,
irmanados pelo amor à poesia. Diferentes, no entanto. Muito diferentes entre
si. E, mais diferentes, ainda, os cânones estéticos de cada um deles, as
diferenças que opõem o Parnasianismo e o Romantismo aos poetas do Futurismo. E
porque diferentes na época do nascimento, diferentes no tempo de vida,
diferentes foram na dimensão da obra realizada.
E no génio? Qual seria a dimensão
das diferenças?
Se para as primeiras afirmações
encontramos facilmente justificação, impossível se torna encontrar uma resposta
para essa interrogação. Por isso dele falaria Magalhães Lima, há cem anos, no
jornal “Aurora do Minho” ao afirmar com emoção e desgosto – “Ninguém sabe o que
perdeu”
De facto, jamais se poderá saber
qual seria a dimensão da grandeza de António Fogaça, se ele tivesse vivido pelo
menos 47 anos, como Fernando Pessoa viveu.
¨¨
Sendo a poesia produto de uma
época, aquela em que viveu António Fogaça iria, de certo modo influenciá-lo.
Uma época em que muitos poetas coimbrões eram ainda românticos, apesar de o
Realismo se apresentar então como uma forte corrente literária e o
Parnasianismo ser ainda da simpatia de uns quantos.
Consequentemente, nesse crepúsculo
do Romantismo que ainda persistia em Coimbra, na voz de alguns poetas, António
Fogaça revela-se sensível à influência de João de Deus. Mas, apesar de
afinidades estéticas de Escola e identidade de reações sentimentais, não
tardaria a erguer uma voz muito jovem ainda, uma voz que era bem a sua.
Amigo e companheiro de Trindade
Coelho e de António Nobre, entre outros, destes difere pela sensibilidade poética
dos seus versos, embora pertença como eles, a essa época em que, como se disse,
o Romantismo era ainda do gosto de muitos poetas e o Parnasianismo dava os
últimos passos e o Simbolismo se começava a adivinhar.
Mas, por diferentes que fossem os
Cânones estéticos de cada um deles, havia contudo semelhanças: algumas com
António Nobre, porque como ele era jovem, poeta e condenado a uma morte
prematura. Sobre a sua cabeça, também a espada da morte estava suspensa, mas
António Fogaça não lhe sentia a presença e muito menos a temia.
Daí um grande apego à vida, que se
traduz em muitos dos seus versos. Os seus olhos estavam postos no futuro,
enquanto que António Nobre não despegava o olhar do passado, sobretudo desse
tempo de infância que, entre afetos vivera. Deixando que nele se acentuasse um
narcisismo apaixonado e doentio que cada vez mais o dominava.
Mas para além de tudo isso, é
notável em ambos uma espécie de fascínio, o gosto pelo sonho que, das ruas
enluaradas de Coimbra se desprende e esse privilégio que é a capacidade de
poder conciliar-se o estranho e o familiar, as sombras e a luz, a inocência e o
conhecimento.
¨¨
Permaneceu António Fogaça, durante
muitos anos, entre os seus companheiros, como se vivo estivesse.
Daí que eu, ao falar agora de
António Fogaça. O faça como se de um poeta vivo se tratasse. Porque os poetas
não morrem. Sabemos bem que assim é.
João Garcia de Guilhade, por
exemplo, poeta do ciclo Alfonsino, que no século XIII em Barcelos viveu,
continua a fazer ouvir a sua voz, uma voz de muitos séculos, nas suas “Cantigas
de Amigo”, “Cantigas de Amor” e “Cantigas de Escárnio e Maldizer”.
Há pouco mais de cem anos, António
Fogaça escreveu as suas poesias e nelas a sua voz continua bem presente, quer
elas se possam enquadrar numa corrente literária ou noutra. Uma poesia em cujo
roteiro lírico avulta, por vezes, naquela sua singela elegância, um gosto
paisagístico, vindo da escola que que o Realismo criara.
“Romântico de costela realista” lhe
chama Urbano Tavares Rodrigues. Na verdade, o Realismo está bem presente em
alguns aspetos da sua poesia, como por exemplo, no modo como, objetivamente
traça a aguarela que é o soneto intitulado “Tela Rústica”, poema que é desta
paisagem o retrato centenário mas ainda atual, apesar das alterações que a
Revolução industrial trouxe até nós.
Pintura colorida de uma terra que
ele amava tanto como amava a vida e que iremos ouvir, para assim melhor
admirarmos as cores desta aguarela minhota que é, como se disse, “Tela Rústica.”
TELA RÚSTICA
(Minho)
A Ernesto Leite de Vasconcelos
Meio dia. A
estação canta radiosa,
Colorida e
vibrante; nos eirados
Jantam à
sombra os homens fatigados
Pelo
esforço da vida trabalhosa.
Dos insetos
a turba luminosa
Volteia e
Zumbe; percorrendo o prados
Andam as
aves chilreando, os gados,
E a
corrente das fontes murmurosa.
Colhem à
cesta o fruto dos pomares,
Ditosas, as
crianças, num delírio,
Descantando
os seus versos populares…
E, nas
vides, do alto, enchendo a vista,
Brilham ao
sol as uvas, cor de lírio,
Como cachos
enormes de ametista.
Por tudo isto, no centenário da
morte de António Fogaça, não quero lamentar a sua partida nem cobrir de
cinzas as palavras que, em sua memória aqui deixo.
Não quero evocar factos da sua vida
de boémio romântico, na cidade onde a morte o surpreendeu, nem tão pouco falar
da tristeza da sua vida enlutada por mortes sucessivas.
Creio que estes aspetos da vida de
António Fogaça todos os conhecem já. Deles falou, em livro, como muito bem
sabe, o grande estudioso da obra de António Fogaça, o Dr. Miranda de Andrade.
Deles falaram, também em jornais e
revistas, muitos dos que com ele conviveram. – Simples notícias ou sentidos
poemas de mágoa e saudade.
Assim, neste cenário da sua morte,
eu quero apenas falar de António Fogaça poeta: - De António Fogaça lírico e
sonhador; Parnasiano e Romântico, Realista ou Erótico, embora de um erotismo
mais idealizado que realizado. Quero falar ainda do sentido de humor de António
Fogaça.
De facto, é a nível da linguagem
poética e no desenrolar de situações ironicamente observadas que esse humor se
revela, se vai realizando, se nos impõe.
Se não, ouçamos esta poesia
intitulada “A uma aristocrata” que constitui na atmosfera que lhe é própria, um
divertido quadro de costumes e uma lúcida análise de sentimentos onde emoção e
ironia se entrelaçam:
A UMA ARISTOCRATA
Minha
Senhora, eu sei que esse brasão
Faz abaixar
os olhos ao mendigo
Que há
muito tempo procurava abrigo
No seu
altivo e frio coração.
Sabe que
nos bailes Vossa Excelência,
Entre as
fidalga íntimas do Paço,
Apenas
concedia um riso escasso
Ao filho de
um marquês… em decadência.
Um dia
cativou-me aquele olhar
Que essa
grande nobreza às vezes lança
Ou para
rebater qualquer esp’rança
Ou para
alguma esp’rança alimentar.
Nesta
alocução dum grande anelo
Não dei a
conhecer meu desespero,
Pois muitas
vezes sonho e amo e quero
E nem me
atrevo ao menos a dizê-lo.
Contudo,
vossa Excelência, num mau dia,
Parece que
sentiu o olhar plebeu,
Como a
manchar-lhe o casto azul do céu
Que
demandava a sua fantasia.
Desde esse
instante é que essa mão pequena
Não
descansou ainda, erguendo o muro, que
Deve
separar este amor puro
Da nobre
face pálida e serena!
Ao avistar-me
só, volta-me as costas,
(o que não
é cortês na velha raça),
Talvez p’ra
não ferir, se por mim passa,
As rendas
no vestido sobrepostas.
Pois bem: se
vossa Excelência dá licença,
Eu descerei
ainda a recordar,
Não o
soberbo raio desse olhar,
O que hoje para
mim era uma ofensa.
Mas sim: se
já não sente o coração,
Ao menos
p’ra consolo dos avós,
Que tenha
bem presente o que entre nós
Se chama em
português – educação.
Na verdade este poema de António
Fogaça, intitulado “A uma Aristocrata”, reúne em si as categorias do cómico e
do trágico, numa demonstração válida entre a consciência e o absurdo da
realidade.
Uma realidade descrita com aquela
ironia própria de uma juventude saudável como era a sua, a par de uma certa
forma de irreverência que é igualmente apanágio de juventude.
Mas esta será, apenas uma pequena
faceta do génio de António Fogaça, porque no conjunto de a sua obra, outros
aspetos nos surgem. – Uma obra que não se resume ao libro publicado em vida do
poeta e intitulado “Versos da Mocidade”, mas também se estende por uma longa
série de poemas dispersos que, no espaço de meia dúzia de anos ele foi
escrevendo e que a Câmara Municipal de Barcelos reuniu num volume por ela
editado, há 25 anos.
Poesia assinalável pela sua qualidade
metafórica, pelo modo como se sabe exprimir sensações visuais de que António
Fogaça é dotado.
Poesia de singeleza. E também de
pureza, onde tudo é genuíno, quase diríamos fora do tempo real. E a não
aceitação, por vezes, dessa realidade, estende-se, em António Fogaça, à angelização
da Mulher, à sua puerilização.
Uma poesia que vive, em parte, do
sonho, da melancolia, da idealização do amor.
Um amor sentido que se exprime como
uma aspiração da alma, quase uma religiosidade, uma fé, como por exemplo, este
poema incluído em “Orações do Amor”
XXXI
Creio no
que tu crês;
Por isso
escuto o que essa voz me diz
E te ajoelho assiduamente aos pés.
Creio no
teu sorriso;
E sinto-me,
se o vejo, tão feliz,
Como junto
do sonho que idealizo.
Creio no
teu olhar;
É ele que
me rasga, glorioso,
As mil
portas do céu de par em par.
Creio em
teu coração;
Que, enfim,
é como um templo majestoso,
Onde eu
adoro a própria adoração.
São assim em grande parte, os
versos de “Orações do Amor”, pequenos poemas dedicados à mulher amada, a quem o
poeta considera “Lírio de Graça”(Poema XL) ou “Pomba do Céu” (poema XXXIII), ou
“Alma ingénua de lírio” (poema XL) isto para referenciar apenas alguns versos
dos seus poemas.
A poesia de António Fogaça não é
fruto de uma juventude plena que passa ao de leve pela vida, uma juventude
simples e esperançosa e que como tal teria de ser singela, fresca e radiosa.
Uma juventude que, como lhe é
próprio, sabe cantar o amor, a saudade e os sofrimentos que o amor traz, embora
em António Fogaça esse sofrimento de amor seja, possivelmente, mais idealizado
do que vivido, tal como a mulher é idealizada, angelizada, em poemas como este,
incluído na primeira parte de “Versos da Mocidade”:
XL
***
A ti,
mulher suave,
Alma
ingénua de lírio,
Seio
alvíssimo de ave;
Amor santo,
benéfico, insuspeito,
Que foste
no passado o meu martírio,
Mas que és
hoje a alegria deste peito
Onde vibram
num só, dois corações;
A ti,
branca Visão, com quem me deito
E com quem
me alevanto,
A ti, que
em riso converteste o pranto,
Eu consagro
estas simples orações.
Na impossibilidade de nos determos
sobre cada um dos poemas em que António Fogaça canta, não só o amor e a
saudade, mas também e de um modo objetivo, a paisagem que o rodeia, e cultiva
de forma irónica, um humor irreverente, terão de ser, forçosamente, de caráter
geral, as apreciações aqui deixadas.
Os seus poemas constituem,
indubitavelmente, uma obra poética que resistiu aos anos e que, passado um
século, é ainda apreciada com entusiasmo e uma pontinha de emoção, sobretudo no
que respeita aos poemas incluídos na primeira parte do livro que em vida o
Poeta publicou e que, como sabemos, se intitula “Orações do Amor”.
Um amor puro, “Amor santo,
benéfico, insuspeito” como acabámos de escutar.
E se o erotismo perpassa, por
vezes, em alguns dos seus poemas, pouco mais será que uma idealização. É uma
outra forma de amar que, embora pesada de erotismo é, como se disse, um
erotismo mais idealizado que realizado, como por exemplo neste poema intitulado
“Visão dum leito”:
VISÃO DUM LEITO
A José Luís Sardinha
Ei-la
dormindo! Como a branca espuma
Que desliza
ao quebrar duma onda enorme,
É seu leito
tão flácido… que, em suma,
Lembra uma
concha onde a volúpia dorme.
Cerrado o
olhar, um céu de ignoto enleio,
O seu corpo
febril me surpreendeu…
Nudez do acaso,
enfim, um céu que veio
Como a
seguir os lumes de outro céu.
Forma
suave, branda, áurea-divina…
– Céu para
os lábios, flor que em sonho amado
De
puríssimos gozos se ilumina,
Sob um
clarão de luar doce e azulado.
E eu sem
poder tocar naquela face…
Nem
conseguir ao menos esquecê-la!
Eu – como
se este olhar, triste, ficasse
A vida
inteira condenado a vê-la!
Vê-la sem a
beijar, - fosse de leve!
Voluptuosa,
entre ilusões e alvores,
Como um
raio de Sol doirando a neve,
Como um
perfume sobre um mar de flores.
Portanto é forçoso concluir que a
poesia de António Fogaça não constitui apenas a revelação de mais um poeta da
segunda metade do século XIX. A sua poesia traçou, pela sua simples existência,
o quadro dentro do qual se desenvolveu percurso que, ao longo de muitas
décadas, vem seguindo.
Décadas que já ultrapassaram um
século, o que por si só diz do valor de uma Obra que, pelo seu conteúdo e
beleza formal, chegou até nós e em nós permanece.
Se a vida de António Fogaça, como
homem, foi curta, a sua vida literária ainda o foi mais: - Cinco ou seis anos
de produção poética são, dum modo geral escassos. E quando esse período de
tempo se reporta a verdes anos, mais não é, na maior parte das vezes, que os
primeiros passos duma caminhada, na idade do devaneio, da singeleza.
Cinco ou seis anos de poesia de
quem na juventude escreve, transportam consigo, geralmente, muitos dos sonhos
da adolescência e, ainda, a marca dessa inocência que é o tempo da infância.
Com António Fogaça, porém, foi um
pouco diferente. E se a sua obra poética não basta para confirmar a
personalidade que se anunciava, não se pode definir essa obra dentro dos
limites duma juventude incipiente, porque embora tivesse apenas vinte e cinco
anos quando nos deixou, há já, em muitos poemas, a existência de uma voz
amadurecida. Uma voz dotada daquela segurança e personalidade expressiva que é
promessa de alto índice estético.
E assim não nos restam dúvidas de
que, no curto espaço de tempo em que lhe foi permitido viver, ele foi grande.
Tão grande nessas limitações que ninguém poderá duvidar que maior seria a sua
obra poética se os fados não lhe tivessem sido adversos.
Uma obra poética onde abundam
imagens originais a par de arrebatamentos líricos e onde se verifica,
frequentemente, a associação do abstrato e do concreto.
É assim, nesse longo poema
intitulado “Pepita”, no qual o poeta vibra e se emociona, emoção estética
idealizada e transposta para os seus versos, segundo a linha de um romantismo
que, repito, ainda se vivia na Coimbra dos anos oitenta.
PEPITA
A Júlio Solar
Ó
bailadeira formosa,
Errante de
praça em praça,
De linhas
feitas de rosa
E gestos
feitos de graça;
Salero!
No toque da
pandeireta
Canta na
tua desgraça
Chora no
teu desespero
Que a turba
brada faceta:
Salero!
O que
importam, Pepita.
As tuas
mágoas secretas;
Se o
coração se agita…
Os olhos
das violetas
Que chorem.
Invejar-te-ão
com raiva
As tranças
nédias e pretas…
Mas que
essas mágoas deplorem
Já não há
peitos, que eu saiba,
Que chorem.
Pelo azul
da aspiração
Quantos
raios desprendidos!
Deixa os
sonhos partidos
A quem traz
o coração
De luto…
Ó minha
pálida filha,
Na forma de
teus vestidos,
– Tristonho
lírio impoluto –
Anda a
altivez de Sevilha
De luto.
Se o pranto
nunca repousa,
Pior é a
vida que a morte:
Ao menos
busca uma lousa,
Que é mais
tranquila que a sorte.
Pepita.
Essa beleza
tamanha,
Sem amor,
sem luz, sem morte
Vergou à
dor e à desdita…
Ai, que
saudades de Espanha,
Pepita!
Que santo
amor virginal
Vergará,
triste, por ti,
Nas salas
do Escorial
Ou nos
jardins de Madrid
Chorando;
Se,
enquanto vais na miséria
Divertindo
a quem sorri,
Loucas,
perdidas em bando,
Erram as
pombas da Ibéria,
Chorando.
Estende a
mão para a esmola
Ao povo que
anda na praça
A ver o tom
da espanhola, dançando e rindo
Com graça.
Salero!
No toque da
pandeireta!
Canta na
tua desgraça
Chora no
teu desespero que a turba brada faceta,
Salero!
Comemorou-se há 25 anos o seu
nascimento. Comemora-se agora o seu falecimento. Nascimento e morte. Dois polos
de uma vida. De qualquer vida.
E, curiosamente, se ao seu
nascimento está, como se disse, ligado o mês de Maio, época do ano em que a
Natureza arremete e irrompe sob a forma do renovo primaveril, a sua morte
acontece, como sabemos, num novembro pardacento, em que essa mesma Natureza
deixa morrer uma a uma, as folhas que na primavera brotaram, prenunciadoras de
uma grande força vital!
Terá sido um privilégio, este
princípio e fim de um Poema, segundo o ritmo das leis da Mãe Natureza?
Não sei. Sei apenas que, como
poeta, ele sentia mais que os outros mortais, a alegria de uma primavera, a
melancolia outonal, a vida que mal teve tempo de olhar, mas que amou
intensamente.
E é esse amor pela vida, transposto
para a sua poesia, que talvez justifique, passados tantos anos, o facto de os
seus poemas continuarem a ser ouvidos com interesse como, com certeza, hoje o
foram.
E se é certo que, em “Orações do
Amor” está o melhor que o Poeta nos deixou, não está com certeza o melhor que
ele nos deixaria se o seu tempo de vida tivesse sido mais longo.
Mas há desígnios que são insondáveis
e ele partiu deixando como as estrelas, um rasto de luz que, passados cem anos,
continua a brilhar no universo da poesia.
Esta poesia de que aqui deixo
notícia, restando-me desejar que possa esta aproximação à obra de António
Fogaça. Modestamente contribuir para fazer aumentar o interesse pela sua poesia
e que ocupe na sensibilidade de todos os barcelenses, de todos os minhotos, de
todos os que gostam de poesia, o lugar a que tem direito.
Porque, parnasiano ou romântico,
próximo de Gonçalves Crespo ou de João de Deus, o génio vivia nele. A chama
estava lá.
Essa chama que engrandece, endeusa,
que glorifica.