quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Estamos numa nova era e tudo são interrogações e projectos, e algum temor também, perante um futuro que, ninguém duvida, vai ser diferente deste último século que já é passado. 

E se há as guerras e as catástrofes, há também os inventos, as descobertas científicas, e as novas ideias que, embora vindas, algumas delas, de tempos anteriores, se ocuparam do homem e da sua condição de vida, procurando torná-la mais justa. E mais suave também, mais facilitada. Claro que se está muito longe do modelo idealizado. Mas também se está longe do modelo que, na primeira metade do século há pouco terminado, ainda persistia.

Por esta razão alguém disse há dias, referindo-se à época actual: se outra razão não houvesse para olharmos o futuro com algum optimismo, bastaria, só por si, o facto de, diluídas as grandes diferenças sociais, e galgadas todas as latitudes, termos podido festejar em conjunto a passagem para um novo milénio.

De facto, pese embora alguns perigos, o progresso fez deste planeta um “aldeia global”, tal a facilidade em comunicar e a rapidez com que percorremos latitudes e longitudes e vamos até ao outro lado do globo com mais facilidade do que, em meados do século XIX, se ia de Barcelos a Lisboa, capital do reino. E vai-se de Cambeses ao Porto mais rapidamente do que nos tempos da administração do Couto, os nossos antepassados iam a Braga em demanda da sé, onde o poder estava instalado.

Mas voltando à facilidade em viajar, não posso deixar de referir aqui uma viagem (diria de estudo) ao arquipélago dos Galápagos, pertença do Equador, o país dos grandes vulcões, das montanhas andinas e do local geográfico que os cientistas, no século XIX, denominaram de latitude zero, viagem esta, de que participei na companhia de muitos jornalistas e seus familiares. E porque naquele tempo ainda tinha o espírito liberto das sombras que depois vieram, pude tomar apontamentos, rever estudos, tirar fotografias, coligir todo esse material e, com um pouco de imaginação, urdir pequenas intrigas, daí resultando uma narrativa de viagens romanceada, a qual pouco mais que rascunhada, acabou por ficar largo tempo no fundo de uma gaveta, até que finalmente tomou a forma de livro, e começa a ser distribuído pelas livrarias.

Não é meu costume falar aqui das obras que vou escrevendo. Mas, desta vez, quase fui obrigada a fazê-lo, porque por amizade assim mo “impuseram”. Portanto, se alguém achar excessiva esta minha atitude, resta-me, desde já pedir desculpa, por assim abusar das páginas deste jornal.

E resta-me também agradecer a todos aqueles que, direta ou indirectamente, me ajudaram a sair do silêncio a que me remetera, e da inércia em que me deixei ficar durante todo este tempo. E agradecer também o ânimo que me deram, ao mostrarem-se empenhados em que esta escritora, que se orgulha de ser barcelense, tenha o seu lugar no mundo literário da língua portuguesa. É o que vou tentar fazer, embora ciente das minhas limitações.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 16-03-2000

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Estranharão aqueles que por ventura me lêem que, ao falar da qualidade de vida em Cambeses, não foque a má qualidade de vida que é a passagem por esta freguesia de um miserável curso de água que ainda dá pelo nome de Rio Este,

Não falei e, se hoje o faço, é apenas para me justificar, porque a mágoa que me toma, ao falar do estado deplorável do rio é tão grande, quanto a lembrança que guardo desse rio da minha meninice é doce e suave.

Era um rio bonito, um rio rico de bogas, escalos, barbos, eiroses e até trutas. Um rio onde a garotada, à vinda da escola, em tempo de primeiros dias estivais, se banhava na cristalina “piscina” que era o açude do moleiro.

Um rio bendito que, a correr desde Braga, atravessava o lado sul da freguesia, por entre veigas, onde o milho crescia luxuriante, e foi riqueza num passado ainda recente.

Não falei desse rio nem da sua intensa poluição, porque o problema transcende a freguesia, o concelho, e até talvez o próprio distrito. Remediar este mal será muito difícil. Mas, pior que esta situação é, quem pode, não evitar que outros males aconteçam, porque ainda há fontes de água pura a brotarem dos montes. Ainda há regatos a descer das encostas, milagrosamente cristalinos. Ainda há minas de água pura. Mas por quanto tempo?

O Rio Este está morto. Mas a morte de um rio é diferente da morte de um ser animal ou vegetal. É uma morte que não traz o desaparecimento do ser amado nem, consequentemente, traz o seu esquecimento. O Rio Este está diante dos nossos olhos morto, acusador, cruel como um remorso. E nós, que podemos nós fazer? Salvem-se ao menos as fontes, as minas de águas que ainda há no subsolo, os riachos, porque suponho, não há nenhum rio, presentemente, que não esteja condenado à morte, “só porque uns quantos querem enriquecer depressa e por qualquer preço”, dizem-me. E eu sou levada a acreditar.

Enriquecer, ostentar riqueza, é a meta de certa sociedade consumista. Mas até quando? Qual a nossa autêntica qualidade de vida? Qual?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 21 – 5 – 1992

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Num dos últimos artigos falei da inauguração de uma escola em Cambeses e do que isso representará para a sua qualidade de vida.

E agora, neste novo espaço, vou tentar falar de um passado que, não sendo muito remoto é, de certo modo, um passado já longínquo. Um passado em que Cambeses, por ser concelho rural e couto de homiziados era uma terra com alguma importância.

Mas, ao focar este espeto, não vou aqui mencionar o poder político e administrativo que, possivelmente, os senhores do Couto teriam, nem tão pouco falar dos bens materiais que consequentemente guardariam dentro dessas vetustas paredes da grande casa que foi a Casa do Paço.

Vou, isso sim, falar da sua escola e do que, para Cambeses representava o privilégio de ter sido das primeiras localidades a ter ensino oficial. Para se avaliar dessa importância, bastará referir que, no século XVIII, raras eram as freguesias rurais que tinham condições para os seus habitantes aprenderem as primeiras letras. E até mesmo a então vila de Barcelos, que sempre fora terra importante, tinha, no início de 1700, apenas uma cadeira de primeiras letras, cujo mestre era pago através dos cofres da Câmara.

É possível que, antes de a Câmara de Barcelos cuidar da instrução pública, tenha havido, em Cambeses, ensino particular, como era de tradição em algumas freguesias rurais. Mas, quanto a este aspeto, temos de nos quedar pelas simples suposições, já que não nos foi possível obter mais esclarecimentos a este respeito.

Uma coisa, porém, é certa: a instrução teve um lugar muito importante em Cambeses e teve-o porque aqueles que estavam à frente dos destinos desta terra se empenharam em obter, para ela, esse benefício, no intuito de melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes.

Porque se ninguém duvida que a instrução é um dos aspectos mais importantes da qualidade de vida em qualquer terra, em Cambeses também terá forçosamente de o ser.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 5-3-1992

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Poderá parecer descabido falar aqui de um colóquio que teve como finalidade homenagear Miguel Torga, um escritor transmontano.

Mas embora nada pareça justificar estas linhas num jornal de Barcelos – excluindo evidentemente a dimensão do escritor, que não é só de Trás-os-Montes nem de Portugal mas de todo o mundo, como foi afirmado mais de uma vez pelos oradores - eu vou falar desse colóquio, que teve o seu início no Porto e o seu encerramento em Vila Real, na Universidade de Trás-os-Montes.

Momentos houve, durante o colóquio, dignos de serem aqui referidos, mas apesar disso vou relegá-los para segundo plano, e colocar em primeiro os acontecimentos que, em S. Martinho de Anta, aldeia onde o escritor nasceu e cresceu, tiveram lugar: Ali chegados, com significativo atraso, foi o espanto a primeira sensação que nós, componentes da extensa caravana automóvel, experimentámos ao depararmos com a aldeia em peso, que ali esperara pacientemente e com alegria nos recebia, acompanhada pelos sons festivos de uma banda de música e o estalejar de foguetes.

Espanto maior seria, para os estrangeiros, gente de gabinete e de cidade, para quem aquela cerimónia exuberante tinha o seu quê de insólito, e os deixara atónitos primeiro e deslumbrados depois. E digo “deslumbrados” porque o deslumbramento estava-lhes estampado no rosto, ao incorporarem-se, sem hesitações, no cortejo, à frente do qual a banda de música e os homens da Junta de Freguesia seguiam, em direcção à pequena casa onde Torga nasceu.

E ali, diante dessa casa singela, que Torga nunca quis transformar em casa espectacular - ali, dizia eu, a banda terminou a sua partitura, sob o olhar atento e respeitoso da multidão. Depois foi novamente o desfilar pelas ruas da aldeia até ao largo principal, onde citadinos e rurais, ombreando, se apinharam sob os olhares entusiasmados dos que pejavam as janelas que se abriam para o largo, correspondendo com acenos e sorrisos aos acenos e sorrisos que, sobretudo os estrangeiros, lhes dirigiam, como se todos eles fossem familiares do grande escritor.

Um largo de casas antigas, bem cuidado, tal como o nome de Torga exige, esse largo onde exerceu clínica e onde se patenteou, ao olhar curioso dos visitantes, reconstituído por acção da Junta de Freguesia, com móveis oferecidos por Torga, testemunhos de uma vida vivida verticalmente.

E foi então que a tuna estudantil, que do Porto viera, exteriorizou o seu entusiasmo e, acamaradando com os componentes da banda em improvisadas peças musicais, deu largas à sua natural euforia. E as saudações académicas, soando no largo da aldeia, nada tinham de insólito porque todos, cada um a seu modo, comungavam desse entusiasmo, dessa emoção. E já mais tarde, no edifício novo da escola, uma vez mais a surpresa aconteceu, no Porto de Honra que esperava os visitantes. Não pelo Porto, servido, - que de tantas vezes acontecer a qualquer um daqueles visitantes, quase se banalizara – mas antes porque algo havia ali de diferente. Não no vinho (de óptima qualidade) mas no carinho, esmero e atenção postos em todos os detalhes com que esse Porto foi servido, acompanhado de doces caseiros que – via-se – mãos femininas da aldeia haviam confeccionado, prestando assim colaboração pessoal, inestimável, à junta de freguesia incansável, sobretudo o seu presidente, orgulhoso e feliz.

Depois foram os discursos, os cumprimentos e agradecimentos de parte a parte. Mas o que mais impressionava era o orgulho patente em muitos rostos, sobretudo em alguns elementos da Junta, por sua freguesia estar ligada ao nome de Miguel Torga. E julgo poder afirmar que tinha sobejas razões para isso. Sem querer fazer futurologia, julgo poder afirmar, também, que é uma honra que se irá prolongar por muitas gerações.

Porque o valor de Torga não é efémero, como o de tantos ídolos que, apoiados pelos meios de comunicação, escudados pelo dinheiro, todo o país conhece agora e vai esquecer amanhã. O valor espiritual de Torga está reflectido na obra que ele produziu. E por isso quase se poderá dizer, sem cair no pecado de exagero, ser ele um daqueles homens, citados por Camões, um desses que “…por obras valerosas se vão da lei da morte libertando.”


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 26-6-1994


quinta-feira, 22 de setembro de 2016


Creio que já citei aqui aquela frase ouvida não sei onde: ”Um país constrói-se com homens e com livros”, frase de que me recordei ao ler um artigo, no “Jornal de Letras”, intitulado “Livros e editores”.

Desse artigo, que me deixou pensativa mas não surpreendida, transcrevo aqui uma pequena parte: “Na Noruega e na Alemanha, cada habitante gasta cerca de seis vezes mais em LIVROS do que um português; mesmo em Espanha, gasta cerca de três vezes mais. Portugal está em último lugar, a esse nível, entre todos os países da União Europeia”.

Mesmo tendo em conta os erros de que as estatísticas por vezes padecem, julgo podermos acreditar que há um fundo de verdade nessas afirmações.

E a propósito sou tentada a, um pouco malevolamente, pôr no ar esta interrogação:

- Como vai Barcelos em relação à aquisição de livros?

Evidentemente que não me estou a referir àqueles ricamente encadernados e ilustrados, de alto preço, colocados nas estantes como qualquer outro objecto de adorno, e que estão de acordo com a mobília e o carro de boa marca. Estou sim, a referir-me aos livros que se compram para serem lidos, manuseados, gastos.

Pertencemos a uma geração em que o verbo “ter” e, pior ainda, o verbo “parecer” são conjugados frequentemente, em detrimento do verbo “ser”. E isto acontece até mesmo com aqueles que obtiveram um diploma académico. De facto, muitos deles puseram de parte ideais juvenis, onde a cultura tinha um lugar importante, para acabarem exactamente como os outros: aqueles que, não tendo grande riqueza interior, se preocupam sobretudo com os sinais exteriores de riqueza.

Claro que não podemos esperar que uma cidade, de um momento para o outro, mude os seus hábitos, adote outros ideais, que aprenda a considerar como valores, outros que não só o cifrão, o futebol, o poder político, porque todos eles são extremamente frágeis, falíveis e efémeros até, ao passo que o enriquecimento cultural do indivíduo é perene, ou melhor, dura enquanto a sua vida durar, pelo menos.

Senão vejamos: quem dá notícia hoje dos poderosos contemporâneos de Camões, Garcia da Orta ou Grão Vasco?

Ou, a nível da nossa terra, dos que nos deixaram, quem fala deles, desses poderosos contemporâneos, por exemplo, do nosso eternamente jovem, o poeta António Fogaça? E desse longínquo Garcia de Guilhade?

Poderia deixar aqui muitos outros nomes barcelenses, mas estes chegam para exemplificar. E além disso correria o risco de ser considerada moralista, o que não é minha intenção.

Mas já que comecei por falar em livros, quero aqui lembrar que a FEIRA DO LIVRO de Barcelos está à porta. Não têm descanso já, aqueles que assumiram a responsabilidade de a organizar. Bom seria que muitos mais começassem a aprender o que é o LIVRO e correspondessem, em igualdade, ao entusiasmo sério dos que destas coisas se ocupam, e deste modo dão prova de uma certa riqueza interior.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 16-6-1994


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Exposição notável, essa do Postal Antigo de Barcelos, que em boa hora pude admirar: imagens diversas de um Barcelos não muito antigo, se o compararmos com o de uma História de séculos. Imagens de um Barcelos vivo e nítido, que nos fala de casas antigas, velhas igrejas, praças e ruas.

Um Barcelos humanizado e alegre nos trajes das lavradeiras, nas imagens colhidas no amplo Campo da Feira, povoado de ruralidade, não só nesses trajes, mas também nos utensílios comercializados, nos animais, no jeito de as mulheres sobraçarem o delicado açafate ou o estimado cesto de cana, cesto de feirar.

Imagens várias de um Barcelos citadino e rural: histórico e pitoresco. Imagens várias de gente vária, que em Barcelos deixou nome. Imagens também de um Barcelos quase bélico, do tempo em que em Barcelos havia um quartel, e do monte (creio que da Franqueira), naquele tempo nu e escalavrado, a servir de palco às manobras militares, às ordens de El-Rei D. Carlos.

Na verdade Barcelos, senhora de um património cultural e histórico notável, está a demonstrar publicamente querer valorizar ainda mais esse património patenteando-o, devidamente protegido, aos olhos de quem o deseje admirar. Já assim aconteceu, em circunstâncias semelhantes, num passado ainda recente, noutras exposições igualmente trabalhosas e pacientemente montadas, que antecederam esta, como foram por exemplo a da “Imprensa Barcelense” e a da “Arqueologia”, esta com a particularidade louvável de ter saído dos muros da cidade para se instalar num meio rural, levando assim esta forma de cultura a quem, por razões atávicas, a não procurou.

Mas voltando ao tema que é a exposição do postal antigo de Barcelos, não posso deixar de aqui salientar a série de conferências enriquecedoras, e sempre oportunas, em eventos culturais deste género.

Eventos que só resultam se o entusiasmo, o gosto pelo que se constrói, e o dinamismo estiverem presentes na sua concepção e realização. E parece que ninguém poderá duvidar de que esta exposição resultou, não para despertar um saudosismo lamechas mas, antes, para que todos nós, que olhamos essas imagens do passado, possamos reflectir melhor sobre este presente que é nosso e o futuro que nos espera.

Essas imagens, que não hesito em classificar de documentos preciosos, irrefutáveis, autênticos. Pedagogicamente valiosos também.

Que mais acrescentar?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 23-6-1994

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Tem Cambeses por padroeiro o apóstolo Santiago, cujo dia festivo é já nos fins de Julho, um tempo em que a terra desabrocha em frutos e marca o início de uma época de fartura, porque é época de colheitas: ”Pelo Santiago pinta o bago…”

Como é do conhecimento geral, nesses recuados tempos da Idade Média, o culto de Santiago (ou São Tiago ou Sant’Iago) era muito intenso, e peregrinar até Compostela era desejo de todos os católicos, embora poucos, por razões várias, o pudessem fazer. Por isso, felizes se consideravam os que visitavam esse local e peregrinação, crentes de que se tornariam homens diferentes, porque mais perto da salvação.

Assim, durante séculos, peregrinos vindos de vários pontos da Europa, chegavam a Compostela depois de terem percorrido longos e demorados caminhos, dos quais ainda hoje se conhece o traçado, bem como se conhecem algumas albergarias e pontes que, à custa de donativos, se ergueram para que os peregrinos mais facilmente chegassem até ao túmulo do Santo.

Dos caminhos que atravessavam Portugal, os mais conhecidos são os da orla marítima e aqueles que demandavam Braga e Barcelos, e daí se dirigiam para o norte, pelo interior do Minho. Mescla destes dois será um que, vindo do sul até ao Porto, seguia até Rates, e daí a Braga, para depois prosseguir em direcção à Galiza. Sendo assim é de admitir que este caminho passasse muito perto de Cambeses ou mesmo por terras de Cambeses.

Ao longo desses caminhos, muitas foram as terras que, associadas a esse peregrinar, tomaram por padroeiro Santiago e, nas suas igrejas, colocaram símbolos desse culto, bem como a imagem do Santo. Cambeses, que já então assim se chamava, adotou Santiago para padroeiro, e é esse o principal sinal, a par de nomes de lugares como Santo André e Carreira, que hoje temos da sua adesão a esse peregrinar.

Diga-se a propósito que, em Barcelos, a devoção a Santiago, profunda na Idade Média, esmoreceu, segundo a opinião de ilustres estudiosos, desde que o milagre das Cruzes aconteceu, e a devoção ao Senhor da Cruz tomou a dimensão que hoje se conhece.

Em Cambeses, a devoção a Santiago deve, igualmente, ter esmorecido, ao dar lugar à devoção ao Senhor dos Passos, cuja capela data de 1678. Só assim se explica o quase esquecimento do seu padroeiro e a ausência de uma confraria tão bem estruturada como o é a do Senhor dos Passos.

Desconhece-se se em Cambeses, na Idade Média, o culto de Santiago teve a dimensão própria da época. Desconhece-se igualmente se a antiga igreja, situada um pouco a sul da que hoje ostenta a data de 1721, teria gravados, nas suas pedras, símbolos do culto a Santiago, tal como não há notícia de albergarias, nem tão pouco de pontes, porque o rio Este, de tão manso e pequeno, não se opunha a que o atravessassem a pé, em tempo de poucas chuvas.

No entanto Santiago está, como orago, na freguesia e a sua imagem venera-se, não só no interior da igreja, mas também no exterior, à esquerda do santuário do Bom Jesus, em local bem visível. Trata-se de uma estátua, fruto de arte popular, cujo autor se desconhece. Está colocada num pedestal, no alto de um penedo e voltada para a freguesia, como que a abençoá-la, o que indicia ter havido uma devoção acentuada ao Apóstolo.

Seria no entanto supérfluo estarmos aqui a especular sobre a importância de um culto ou outro, ou tentar demonstrar até à exaustão que, de facto, um dos caminhos de Santiago passou por Cambeses porque, para além do significado particular das confrarias, ou dos caminhos de Santiago, há os valores culturais e espirituais que lhes são subjacentes, os quais, sem dúvida, vão interferir na qualidade de vida dos povos que aceitam e cultivam esses valores. E creio que em Cambeses assim aconteceu.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 22-7-1993

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Não sei como falar de Cambeses, tendo na ideia toda esta paisagem humana que os sentidos captam, todo este permanente baloiçar entre o entusiasmo da renovação que, de forma por vezes agressiva, se processa em muitos pontos da população rural e a melancolia do tradicional.

Não se trata porém de saudosismo nem desejo utópico de regresso ao passado, esse passado ainda recente, cujos aspectos positivos se opunham aos outros, os considerados negativos, tal como a escassez de bens materiais se opõe à exibição clara e, quantas vezes, forçada, de uma abastança que nem sempre é real. E não sendo real, será necessariamente dolorosa, com o seu cortejo de competições mesquinhas, ansiedade, angústias. Não é também uma visão romântica do passado, é apenas uma evocação no confronto com o presente, cujo mérito será talvez levar-nos a reflectir sobre ele.


Naquele tempo, nenhum écran de televisão os perturbava ou induzia a consumir produtos embalados em vistosas e coloridas caixas. Nenhuma imagem os incitava à imitação sem lhes dar tempo a reflectir. Iam às feiras mais próximas, observavam os produtos expostos e, sobre a sua aquisição, reflectiam devagar, sem o perigo de seduções e tentações. Cumpriam contratos e assumiam compromissos sem receio de burlas, precipitações, mal entendidos.

Eles tinham tempo para falar, pensar, tempo para resolver as situações. Eles tinham muito tempo, porque “o tempo, diziam, dava-o Deus de graça”. E porque tinham muito tempo, sobretudo quando as noites eram longas e frias, possuíam uma sabedoria usada e ensinada com a simplicidade que lhes permitia entregarem-se à alegria ou tristeza, sem prejuízo da sua firmeza de ânimo. Não falavam de honra. Assumiam-na. Não diziam palavras de paz e justiça. Viviam-nas.

Muitos, sobretudo os homens, sabiam ler, conheciam algumas das leis que em Lisboa se faziam, mas a população procedia segundo esquemas estabelecidos por longínquos antepassados. Por isso não sentiam necessidade de muitas leis, nem de um estado poderoso. O que se passava em Lisboa era como se não dissesse respeito à aldeia. À aldeia diziam respeito, isso sim, essas leis que eram reflexo de vivências aprendidas nas lonjuras do tempo e onde o respeito pelo seu semelhante estava em todas elas. E se alguém não cumpria essas leis era punido, não só pelas leis emanadas de Lisboa, que em Barcelos se executavam, mas também pela sanção moral que era a perda de confiança por parte da comunidade, o desprezo, o ostracismo a que daí em diante seria votado. Era a desonra como um labéu, gravado na fronte a ferro e fogo, e transmitida a seus descendentes.

Mas os que cumpriam podiam dormir em paz, dançar alegremente em terreiros de romaria e viver cada festa, cada solenidade religiosa, gota a gota, como quem apreciava um vinho antigo. Podiam entregar-se às festas de romaria porque eram suas. Por isso eram participantes, e não meros espectadores, como agora acontece, preocupados mais em se mostrarem, em parecerem, do que serem com autenticidade, mercê dos falsos progressos mentais em que muitos se apoiam, os quais alteram o humor, adulteram-lhe os gestos, condicionam-nos.

É sabido que todas as sociedades têm as suas épocas de transformação mais acelerada e que essa situação gera por vezes desarmonia. No entanto o equilíbrio tem sido sempre ou quase sempre reencontrado. Esperemos que agora também assim aconteça.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 28-5-1992

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Como se sabe, Barcelos tem tradição jornalística importante, e disso foi testemunho irrefutável a magnífica exposição que há cerca de dois anos aconteceu nesta cidade de Barcelos, a qual teve por tema “A Imprensa Barcelense”.

Ora o que talvez não saibam, porque não constou dessa exposição, embora a imprensa local o tivesse ditado anteriormente, é da existência de um jornal cuja sede era em Cambeses, um semanário que, embora com o formato de um jornal regional, o seu director, modestamente, apelidava de “Boletim Paroquial”. E porque soube da sua existência graças a um artigo de um ilustre colaborador deste Jornal de Barcelos, fui procurá-lo na Biblioteca Municipal do Porto e, após algumas buscas, acabei por ter acesso ao referido semanário, que “Domingo” se chamava.

Era seu director o pároco de Nine, Pe. Francisco Lima Novais e seu editor e administrador o pároco de Cambeses, Pe. Domingos Peixoto da Costa e Silva. O “Pe. Peixoto” de quem tanto ouvi falar na minha meninice, mas que já não estava em Cambeses quando ali me baptizei. Nessa altura era o Pe. Sebastião, amigo da casa onde nasci e me criei.

Igualmente próximo da casa era o Pe. Peixoto, e as relações de amizade estabelecidas foram óptimas, com a minha idosa bisavó, dona da casa, relações nem sempre suficientemente cordiais com o marido desta, devido possivelmente a desentendimentos de carácter político, a ajuizar de um certo pendor partidário, que parece transparecer em muitos dos artigos que preenchem as páginas do jornal. Se mais não houvesse, bastaria a constatação do número de 13 de junho de 1915, tempo de eleições, provavelmente, de uma chamada de atenção, em letras grandes, para que não escapasse à atenção dos leitores, exortando-os: “À urna cathólicos!”

Não se pense, porém, que se tratava de um jornal marcadamente panfletário. Nada disso. Era dado também à cultura, publicando textos literários, nomeadamente poesia de vários autores, de entre os quais destacarei a poetisa Julieta Leite de Figueiredo, nome que suponho tratar-se de pseudónimo adotado, possivelmente, por alguma senhora de Braga ou Barcelos.

Mas para além destas características, há também notícias várias de nascimentos e óbitos, nomeadamente a de um emigrante de 26 anos apenas, que regressa do Brasil para morrer na sua terra, o que de facto acontece passados escassos dias de a este chão, que ele devia estremecer, ter chegado, indo ocupar fugazmente, em casa de sua mãe, o lugar que anos antes havia abandonado.

Curiosamente este jornal não noticia casamentos. Mas relata alguns factos, de entre eles o que vai acontecendo em Dia de Passos, o dia maior da freguesia, ainda hoje, e conta algumas histórias, de entre elas uma que se relaciona com o pesado e lendário sino da torre da Igreja Matriz (história ou lenda) que eu ouvi há muitos anos, de uma velha amiga que há muito repousa no cemitério de Cambeses, história que reescrevi e consta de um dos meus livros de contos.

Durou a publicação deste jornal dois anos, sendo o primeiro número de 31 de maio de 1914, e o último de 28 de maio de 1916. A justificação da suspensão do jornal foi a de se verificar grandes dificuldades em obter papel, o que se compreende, dado que estávamos em plena Primeira Grande Guerra, época de muitas restrições e de preocupações também.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Cambeses Nova Era

Como já se verificou, este é o novo título de uma série de crónicas já iniciada, do qual consta, como sempre, o nome Cambeses, o que não impede que o tema a desenvolver seja mais abrangente e que aborde, portanto, outras terras, muito em especial Barcelos, o Barcelos actual, onde alguns tentam, esforçadamente, abrir caminho por entre o emaranhado matagal da indiferença e até, por vezes, da incompreensão.

Portanto, e antes de referir diversos eventos que, em prol da Cultura, estão a ser levados a cabo, não se pode deixar de evocar a obra desenvolvida pelo pelouro da cultura no último mandato, durante o qual, se mais não houvesse, bastaria salientar os esforços despendidos nessa gigantesca e utilíssima obra que foi dotar a cidade de uma biblioteca moderna, funcional e exemplar, e salientar igualmente, a par de outros eventos, o congresso “Barcelos Terra Condal”, muito bem organizado e participado por estudiosos de todo o país e o qual, dada a sua amplitude, deixou marcas profundas na história da cultura barcelense, marcas que muito dificilmente se apagarão, porque os livros das atas, com pontualidade rara, aliada a um grande cuidado gráfico, excepcionalmente bem executado, aí estão à disposição de quem os queira consultar.

Claro que obras destas passam quase despercebidas, ao contrário do que acontece com a inauguração dessas aparatosas obras de betão, que é o que certos autarcas mais gostam de mandar executar, porque é o que mais dá nas vistas.

Embora não se negue a utilidade de obras desse género, não podemos deixar de salientar a importância dos estudos do passado desta terra, a que o Congresso deu força, porque, como já alguns têm afirmado “é estudando o passado que melhor se poderá entender o presente e programar o futuro”. Claro que a cultura não deve ser exercida apenas a nível de elites, e a cultura popular de Barcelos com certeza que também não foi descurada nesse último mandato.

Mas passando ao novo pelouro da cultura, forçoso é dizer que se verificou já um novo estilo, numa nova forma de servir a cultura, ou seja, levá-la mais insistentemente até outras camadas que não serão propriamente as dos denominados “intelectuais” mas sim ao grande público.

Assim, e nos últimos tempos, tem-se assistido ao anúncio e concretização de toda uma série de eventos, ao alcance do grande público, nomeadamente os incluídos no programa “Memórias do século XX”, dos quais quero destacar, porque inéditos em Barcelos, os passeios denominados “Roteiro Cultural – Conhecer Barcelos”, a par de exposições como as de imagens de “Santiago em Barcelos”, na qual esteve presente a imagem de Santiago que em Cambeses se venera. Outras exposições houve, das quais se destaca a exposição de escultura e cerâmica, entre outras.

Isto, e as “Primeiras Jornadas de Olaria”, e as “1ªs Jornadas de História Contemporânea – Portugal no Estado Novo”, sem esquecer a contínua dinamização da biblioteca, com aproveitamento do seu auditório, onde têm tido lugar diversos eventos, o que prova que a biblioteca municipal não é apenas um lugar onde se requisitam livros e se lêem os jornais da região e pouco mais. De salientar ainda o “XV Festival de Teatro Popular”, “Encontro de Poetas Populares”, a criação de um prémio literário, etc., etc..

Evidentemente não vou citar nomes, porque é sempre delicado enveredar por aí, pois corre-se o risco de omissões. Diria antes que é toda uma junção de esforços que, mesmo tendo por vezes alguma razão para desânimos, nunca esta equipa se dá por desanimada porque, vê-se, gosta do que em prol da cultura está a fazer. Daí o seu inegável sucesso.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 10-2-2000

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Cambeses de hoje, que tem a antecedê-lo muitos séculos de história, também se interrogará, tal como as outras terras, quanto ao seu futuro no novo milénio, que uns vêem com algum receio e outros com muita esperança.

Diga-se a propósito que o tempo presente em Cambeses, nada tem a ver com esse tempo passado anterior à fundação da nacionalidade, em que este pedaço de terra existia já com este mesmo nome. Nem tem a ver, de forma acentuada, com o tempo vivido na primeira metade do século passado, dado que, a partir dessa data, a situação socioeconómica de Cambeses, tal como a de todas s freguesias do concelho, para só falar nestas, sofreu uma reviravolta nunca antes imaginada. A prosperidade chegou finalmente e as classes sociais, em termos de riqueza, ficaram muito menos desniveladas.

No entanto, nem tudo são rosas, e a outra face da medalha aí está, com problemas vários, sobretudo os de ordem ecológica, a atingir predominantemente as águas, e tudo porque a ânsia de lucros imediatos se sobrepõe ao respeito pelos direitos da comunidade, que o mesmo é dizer, da saúde pública.

Mas não são só estes aspectos que nos deverão preocupar. Outros há, que apesar de menos visíveis, não deixam de ter as suas consequências. E uma delas é o quase desaparecimento de algumas espécies de animais, senão vejamos: onde pára toda essa gama de pequenas aves que vinham até cá ou por cá permaneciam? Porque são cada vez menos as andorinhas? E os chascos? E os piscos? E os tordos que em bandos densos ainda há pouco se avistavam no outono? E as levandiscas, também chamadas de boieiras, porque saltitavam pelas leivas que o arado, puxado pelos bois, ia abrindo?

Restam os pardais, embora menos, e até mesmo os melros robustos e desconfiados parecem estar a desaparecer. E tudo, segundo me dizem, por causa dos pesticidas que vieram substituir a tarefa dessas pequenas aves, que era caçar os insectos prejudiciais à agricultura.

Não tenho formação científica para aqui analisar o problema. Por isso me limito a evocar, com os olhos da minha infância, essas pequenas aves e o tempo em que descobrir um ninho de chasco, num silvado, era uma emoção. E procurar outros, nas altas ramadas, era uma aventura. Agora essas pequenas aves, que para além da sua utilidade, enchiam os campos de música e de vida, tendem a desaparecer, sem que nada se possa fazer para deter tal extermínio.

É mais um problema a juntar aos outros problemas de ordem material e relativa gravidade.

No entanto, outros há diferentes mas igualmente de temer. O tal endividamento das famílias, de que se começa a falar nos meios de comunicação social, consequência de uma informação distorcida e de uma publicidade desenfreada e sedutora. Na verdade, o consumismo para o qual muitos não estavam preparados, é em grande parte, o motivo principal da angústia daqueles que se vêem a braços com situações difíceis de resolver.

Mas há ainda os outros, aqueles que, usufruindo de uma certa prosperidade, continuam a sentir-se insatisfeitos, dominados pelo espírito de competitividade (nem sempre no melhor sentido) e pelo tal consumismo que por todo o lado se instalou com intenções de ficar enquanto puder. A tal ponto que “nem os cemitérios escapam” como dizia há tempos um jornalista ainda jovem que, por razões familiares, só agora reparou nesse pormenor.

Defender esse ponto de vista é delicado, porque a atitude tomada pode ser classificada de nostalgia excessivamente conservadora ou até mesmo retrógrada. Por essa razão é dever esclarecer que apenas se quis apontar desequilíbrios que no entanto não serão de estranhar se pensarmos que quase toda a mudança os provoca. Mas muitos desses problemas poderiam ser evitados e outros solucionados, se enfrentados com a necessária isenção, empenhamento e coragem também.

Abordar este tema é delicado, repito, mas pior é ficarmos de braços cruzados, como até aqui tem acontecido.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 30-3-2000

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Barcelos era, para quem naquele tempo vivia em Cambeses, uma cidade distante, quase desconhecida, mítica.
Barcelos era o poder, a lei, a justiça. Barcelos era o lugar onde os mancebos iam à inspecção militar e os homens à revista da caderneta. Barcelos era tudo isso e era o lugar onde se iam tirar certidões. E era também o lugar onde estava a autoridade representada na farda dos soldados da GNR que por vezes, em visita de rotina, víamos passar a caminho da casa do regedor. Barcelos era o tribunal com que ouvíamos ameaçar os suspeitos de crime de roubo ou difamação. O tribunal que julgava disputas de terras e águas, desacordos em partilhas, zaragatas. Barcelos, em suma, era a Lei que protegia e a que obrigava a pagar a “décima”, impostos sobre carros de bois, multas. E era também o lugar onde as crianças, de roupa nova e sapatos a estrear, faziam o exame da quarta classe. Luxos que quase esqueciam ao serem colocadas perante um júri que atemorizava aqueles indefesos de 10 ou 11 anos, subitamente arrancados aos horizontes limitados da aldeia.
Barcelos era pois um lugar temido perante um júri tão severo que até a própria professora o temia, a ajuizar pelo nervosismo patente nos seus gestos, ao acompanhar silenciosamente, sem nada poder fazer para repor neles o “à vontade” comportamental que nas aulas mantinham.
Tão emocionante como o exame era a permanência naquela escola de linhas modernas, que nada tinha de semelhante à sala adaptada a escola que durante quatro anos frequentáramos. Escola da qual levávamos na lembrança o átrio enorme, a sala enorme, a escadaria como nunca tínhamos visto outra.
Divisões que talvez nem fossem assim tão espaçosas e muito menos sumptuosas, mas que aos nossos olhos indefesos ganhavam uma extraordinária dimensão.
Dimensão idêntica à que a feira semanal ganhava com a loiça de barro, da qual nenhuma casa prescindia, e da loicinha com que todas as meninas gostavam de brincar nas tardes de domingo.
E hoje, Barcelos que significado terá para quem em Cambeses vive? Será sem dúvida o poder, as leis, a justiça, mas não é, com certeza, a cidade distante, mítica, desinteressada, inacessível. São as obras que o provam, e alguns aspectos da sua qualidade de vida também.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 14-5-1992

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Não resisto, uma vez mais, a falar da instrução em Cambeses, que o mesmo é falar da sua qualidade de vida. E ao falar da instrução, tenho fatalmente de evocar esses velhos edifícios que mais não eram do que casas particulares de boa construção, cujos donos cediam, por arrendamento, uma das suas salas, grandes como dependências domésticas, mas inevitavelmente acanhadas como salas de aula.

A primeira escola de Cambeses, escola muito antiga, esteve instalada em mais que uma casa, sabendo-se que, em 1915, estava a funcionar no lugar de Pomarinho. Nessa mesma data, uma nova escola foi criada, a feminina, que passou a funcionar no lugar da Cruz, em idênticas circunstâncias. Depois, talvez por conveniência dos professores, trocaram entre si as salas, para, em 1937, voltarem a ocupar as antigas instalações, assim permanecendo até 1959, data em que foi inaugurado um edifício escolar de frequência mista, no lugar de Gatão.

Foi sem dúvida um grande benefício para a freguesia. Mas esta melhoria na qualidade de vida só foi possível porque os representantes do povo se esforçaram nesse sentido, tendo de vencer muitas dificuldades e uma delas foi a obtenção, a expensas da freguesia, do terreno necessário à construção. Para o efeito criou-se uma comissão que conseguiu obter a importância necessária através de subscrição na freguesia. Outras dificuldades houve ainda a vencer, no respeitante a acessos indispensáveis à escola. Mas vencidas todas elas, a escola cumpriu a sua função, assim se mantendo durante trinta e três anos, se não em condições óptimas, pelo menos em muito melhores que aquelas até então verificadas nas escolas improvisadas em casas particulares, escolas sem recreios amplos, nem instalações sanitárias minimamente aceitáveis.


Salvava-se o ensino que, esse sim, era de muito boa qualidade, não podendo deixar de, a propósito, referir aqui um nome: o da professora Isaura Domingues Tavares Gouveia, que durante uma escassa meia dúzia de anos, dado o seu empenhamento, a sua devoção pelo ensino, marcou profundamente a infância das rapariguitas de então.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 4-6-1992

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Mal extintos que são os ecos de um carnaval que, em Cambeses, quase passa despercebido, já a freguesia se prepara afanosamente para participar das solenidades religiosas que, no primeiro domingo da Quaresma, invariavelmente têm sempre lugar, as quais culminam com a procissão do Senhor dos Passos, culto este cujas origens se perdem nos séculos.

E é sobretudo o aspeto religioso que mais atrai a multidão, já que, como é sabido, não se trata de uma festa popular com foguetes e música de discoteca ou dita popular.

Bem ao contrário, se há música, porque há banda, essa é clássica e melancólica, convidando à meditação, bem como a música gravada que agora se faz também ouvir, a anteceder as solenidades. E há também o cântico magoado da Verónica que, a espaços, e enquanto a procissão sobe o escadório, se espalha no ar, escutada por uma multidão expectante, cujo silêncio é cortado pelas profundas e espaçadas badaladas do lendário sino grande da igreja matriz.

Embora a presença de sacerdotes, sobretudo do Pregador, seja indispensável e importante, como é óbvio, todo este ritual religioso é fruto do trabalho de uma confraria centenária, cujos estatutos são escrupulosamente seguidos pelos irmãos da confraria do Senhor dos Passos, Irmãos que nunca rejeitam responsabilidades inerentes à condição, a não ser que motivos de força maior a isso obriguem.

Trabalho intenso de um ano, é sobretudo o daquele irmão que preside à comissão obreira e que, em linguagem local, é denominado por “O que faz os Passos” e é esse sentido do dever moral assumido com total despojamento dos interesses pessoais, vaidadezinhas e prepotências, que eu quero, com todo o respeito, aqui salientar, porque são atitudes destas, em tarefas tão especiais, que dignificam um povo, neste caso, a freguesia.

Não me foi possível anda saber em que ano teve lugar a primeira evocação da Paixão. Suponho que no início de 1600, já que a capela do Bom Jesus data de 1678 e a primeira Procissão dos Passos em Portugal teve lugar em Lisboa, em 1587, na freguesia da Graça, logo sendo instituída em Braga. A partir daí deu-se a sua expansão por terras do Norte, nomeadamente pelo actual concelho de Barcelos. Mas julgo poder afirmar que sendo um tipo de solenidades tão em uso em terras daqui, nenhuma freguesia possuirá, julgo eu, para a procissão dos Passos, um percurso de Via Sacra tão empolgante como este, não só pelo espeto arquitectónico do seu calvário, de elegante escadório, e bonitas capelinhas, como também pela situação privilegiada do monte sacro, encimada pela tri-centenária capela do Bom Jesus.

Dramaturgia da Paixão, intensamente vivida por todos quantos a Cambeses acorrem, ela é fruto da persistência e serenidade com que a confraria, cujo “presidente”, se assim se lhe pode chamar, é substituído por um outro que, auxiliado pelos irmãos, tudo faz para que resulte. De facto nada aqui acontece por acaso ou de improviso. O programa pré-estabelecido cumpre-se sem uma falha, um percalço, porque todos os irmãos, respeitando as hierarquias, que em cada ano se determinam, assumem com dignidade e entusiasmo as funções que lhes são atribuídas.

Por tudo isto não posso deixar de relevar esse espeto muito positivo da população de Cambeses, o qual traduz, não só forte sentido de religiosidade, vivida dessa forma, mas também o sentido do dever, o respeito pelas leis ancestrais, e o saber cumprir a sua missão com verticalidade, honra e humildade autêntica, aquela que é sinónimo de grandeza.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Recordar a Festa das Cruzes através das imagens de uma vivência anual de poucas horas seria quase impossível sem o recurso à memória afectiva da maior parte dos acontecimentos e a maior parte dos acontecimentos teria sido varrida da minha memória, se não houvesse o regresso, embora fugaz, ao espaço percorrido quando era criança ainda. Espaço que é, todo ele, tumulto de gentes, luzes, sensações que transcendem a minha capacidade de atenção num cenário de carros de bois, pipas de vinho, panos das tendas esvoaçando, mulheres de lenços coloridos, homens de varapau. Imagens que se desdobram diante dos meus olhos sempre que volto a ter nove anos e me deixo envolver pelo tumultuar da Festa. Imagens plasticamente magníficas, as quais os meus sentidos refazem numa antiga intimidade com sons, cheiros, e aquela poeira luminosa rodopiando no vasto campo.

Imagens retomadas com uma espécie de nostalgia que me devolve a ingenuidade daqueles tempos felizes e simples, porque são sempre simples e felizes os tempos de infância que na memória guardamos depois de exorcizados os outros. E é assim que torno a ver com nitidez caminhos percorridos e torno a sentir o prazer de passear ao acaso atraída por aquilo que então, de certo modo apreciava, e que era o som compacto de vozes humanas na aglomeração dos gestos e exclamações, amalgama, confusão. E a imaginação a fervilhar por entre aquela floresta de toldos, ao mesmo tempo que os olhos inquietos e ávidos procuravam, e os sentidos guardavam, fragmentos dessa paisagem incomparável que me tomou e tornou sua. Porque há muitas formas de pertencer a uma terra e esta é uma de entre muitas.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 7 – 5 – 1992

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Nessa época, tempo de austeridade e de grandes dificuldades económicas, ir de Cambeses a Barcelos a pé era uma jornada penosa, só executada em última necessidade. E ir de comboio, dada a escassez e precaridade desse único meio de transporte público, era uma odisseia enervante e dispendiosa.

Por isso Cambeses, que dista da sede do seu concelho cerca de uma dúzia de quilómetros, podia considerar-se aldeia longínqua, perdida nos confins do concelho, a confrontar com freguesias de Braga e de Famalicão. Não é portanto de admirar que poucos fossem os contactos entre a freguesia e a sede do concelho, a não ser em caso de obrigação a cumprir na câmara, no grémio ou no tribunal e pouco mais. Até mesmo a feira não era muito procurada para quem tinha gado ou produtos agrícolas para comercializar, já que a de Famalicão, a de Braga, e até mesmo a da Isabelinha, em Viatodos, se apresentavam mais cómodas quanto à deslocação a efectuar.

Tudo mudava, porém, quando se tratava das Cruzes. “Ir às Cruzes a Barcelos!” Uma tentação, uma festa, um desejo. Uma festa em cada ano repetida, sempre igual e sempre diferente. “As Cruzes” simplesmente.

“As Cruzes” daquele tempo, em dia de feira frança, com carros de bois, saias que já começavam a ser de pouco pano, blusas de seda e os mesmos cordões de ouro, as mesmas argolas nas mulheres, igual modo de pentear os cabelos, os mesmos lenços coloridos.

Arejavam-se pois os fatos do dia de festa, gastavam-se algumas economias na branca regueifa ou na trigueira rosca de trigo e centeio que acompanhava com postas de bacalhau frito a alegria das infusas onde o vinho espumava e logo era vertido nas malgas que passavam de mão em mão, na alegria dos reencontros.

Ajustavam-se contratos, namoriscava-se, trincavam-se doces de gema cobertos de açúcar cristalizado, E, se as finanças o permitiam, tomava-se lugar debaixo dos toldos, abancando às compridas mesas, ombro com ombro, onde, ao lado dos pirolitos e laranjadas havia petiscos e, sobretudo, o pipo de vinho, com muitos litros de alegria, para distribuir por centenas de gargantas sequiosas.

Mas mesmo para quem não se deixava tentar por uma ida à Festa, as cruzes tinham um lugar muito importante, porque incluído na calendarização dos hábitos, preceitos e acontecimentos da região, quando assim se marcava o tempo: – “Foi ali pela maré das Cruzes…”, “Foi antes das Cruzes que…”, “As Cruzes já tinham passado há um ror de semanas quando…”.

No tempo das Cruzes faziam-se as últimas vessadas, e iniciava-se nessa época um outro tipo de contrato de trabalho que incluía merenda aos jornaleiros, cláusula que durava até ao S. Miguel. E até uma simples sementeira de melões e melancias se calendarizava pelas Cruzes, porque nessa época deveriam os pequenos caules ter já quatro folhinhas em cruz. Estes e outros preceitos mais, não esquecidos ainda hoje, suponho.

Porque, se muitos hábitos mudaram e o aspeto exterior dos rurais indica melhoria de vida e até um certo aburguesamento, se a alimentação e tarefas agrícolas sofreram profunda alteração, tal como a sofreu o traje feminino e os meios de transporte utilizados para ir à feira, a festa das Cruzes, essa, julgo ser ainda a mesma, na medida em que é motivo de evasão, apetecida acalmia nas corridas a que as novas condições de trabalho obrigam. É o intervalo, a alteração da rotina. Por isso, e segundo creio, “As Cruzes” continuam a ser a radiografia de hábitos e tendências de um povo fiel, apesar de tudo, às suas raízes e a muitas das suas leis ancestrais.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 30-4-1992

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Daqui de Cambeses, nesta paz rumorejante de pinhais que, a partir de Bouçó se estendem para o concelho de Braga, nesta paz bucólica que ainda é possível aqui usufruir, olho as folhas avermelhadas das vides e o amarelecer preguiçoso dos castanheiros, anunciadores de alegres magustos, próprios do mês de novembro.

É como se o dia dois de novembro e a lembrança fugazmente avivada dos que se foram, já se tivesse dissipado. E, de facto, breve o esquecimento os cobre, exceto para aqueles que “por obras valerosas se vão da lei da morte libertando” - concluo para mim, nesta aproximação ao verso camoniano. E de súbito ocorre-me o nome de um homem notável, que em Barcelos nasceu e cresceu, e cuja evocação do sexagésimo aniversário da sua morte decorre agora.

Trata-se de Jaime de Séguier, homenageado já em 1951, por iniciativa da Assembleia Barcelense, tendo Ernesto da Várzea proferido ali uma conferência em que focou sobretudo o poeta de juventude que esse barcelense ilustre foi. Mais tarde, em 1966, coube a vez ao Dr. Miranda de Andrade e, ainda por iniciativa da mesma assembleia, evocá-lo não só como poeta, mas também como jornalista, escritor, diplomata e economista.

Cabe agora a vez à Biblioteca Municipal de, no dia 28, lembrar esta figura notável dos fins do século XIX e primeira metade do século XX, que foi Jaime de Séguier.

Homem afortunado, dotado de excepcionais qualidade de inteligência e cultura, viu ainda em vida serem-lhe reconhecidas as qualidades de devotamento e labor com que sempre cumpriu as suas funções, não só pelo Governo de Lisboa mas também pelo do Brasil e França, que lhe concedeu o grau de Oficial da Legião de Honra (de França).

Espírito dotado de espantosa flexibilidade, não se limitou à carreira diplomática. Ele foi também jornalista, colaborando no “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro, quinzenalmente e durante trinta anos, dando deste modo a conhecer ao Brasil o que por França e resto da Europa ia acontecendo em matéria cultural, política e social também.

Dotado de uma precocidade notável era, aos quinze anos, jornalista no “Jornal da Noite” e, aos 21, cronista diário no “Folha Nova”, que então se publicava no Porto. Crónicas brilhantes, fruto de uma actividade intelectual constante, cujos temas variadíssimos revelam um espírito sagaz, atento e observador, qualidades aliadas a um fino sentido de humor e sensibilidade criativa. Essa mesma sensibilidade patente na sua poesia, que em livro intitulado “Allegres Adágios” ele nos deixou.

Factos estes que, ouso dizer, mais do que quaisquer outros, tornaram durável a memória que, a partir de 1932, dele se guardou.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 18-1-92

domingo, 4 de setembro de 2016

Para este artigo, que será o primeiro de uma série, segundo espero, escolhi o título “Qualidade de Vida” que é expressão muito actual e fruto de preocupações de vária ordem. Quanto ao subtítulo, “Daqui de Cambeses” ele indica, como é óbvio, que será Cambeses, em especial, o tema destes textos. Cambeses e a sua qualidade de vida.

Oxalá que eu, como escritora e por, até certo ponto, estar ligada ao jornalismo, possa expor, com isenção, os meus pontos de vista quanto a essa qualidade de vida, seja ela boa ou má.

E assim, cumpre-me hoje referenciar, para minha satisfação, algo muito positivo quanto à qualidade de vida em Cambeses. Um acontecimento que mereceu notícias a quatro colunas, não só no jornal “O Primeiro de Janeiro” mas também noutros. Estou a referir-me evidentemente à inauguração do belo edifício que é a escola primária.

Estão de parabéns a população da freguesia e os órgãos do Poder que, nesse sentido se esforçaram. Mas não posso deixar de o dizer: se foi um benefício, foi sobretudo um ato de justiça. E a justiça não se agradece: merece-se, exige-se. E Cambeses, há muitos e muitos anos que tinha direito a esta escola, sobretudo quando as crianças eram muitas mais que a escassa centena de agora. Cambeses que em 1800, quando era ainda um concelho, tinha já, caso raro naquele tempo, a sua escola. Por isso Cambeses, que teve um passado notável, e que pacientemente soube esperar por uma escola com as condições que a de agora possui, não tem que agradecer esse ato de justiça, tem, quando muito, de agradecer o empenhamento no sentido de abrir o caminho à justiça.

Mas seja como for, a escola aí está, bem apetrechada, bem estruturada, de portas escancaradas aos muitos caminhos da cultura, a qual, sem dúvida está na razão direta de uma boa qualidade de vida, muito mais que certos valores materiais que uns quantos teimam em adotar como principais.

Daí congratular-me pessoalmente com este ato promissor de melhores dias para a vida em Cambeses.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 27 – 2 – 1992

sábado, 3 de setembro de 2016

Nesta ainda possível paz usufruída numa tarde domingueira em Cambeses, tive entre mãos uma jovem revista que se edita na Escola Secundária Alcaides de Faria, de Barcelos, e se denomina “Avenida do Minho”. 

Folheio-a de novo e, ao reler uma ou outra poesia, um ou outro artigo, surpreendo-me a pensar no inestimável valor de uma publicação deste género, tanto mais que atravessamos uma época caracterizada pela preocupante desvalorização da palavra escrita, enquanto suporte de criatividade literária e também jornalística. Uma época em que os audiovisuais, nomeadamente a televisão, quase anularam o gosto pela leitura, ao impor as suas efémeras imagens, como substituição das que a imaginação cria e mantêm como resultante do ato de ler.

Não pretendo aqui menosprezar as vantagens do audiovisual em favor da palavra escrita, porque acho que as duas podem perfeitamente coexistir. É, aliás, um princípio recentemente defendido no segundo encontro ibero-americano de jornalismo cultural, que teve lugar no México. E porque assim o creio também, continuo a manter a esperança de que o prazer da leitura resistirá a todos os avanços do audiovisual, esperança que assenta sobretudo no êxito que é, em cada escola, um jornal escolar.

Êxito bem evidente nesta jovem revista “Avenida do Minho”. Jovem não porque relativamente recente, mas porque é, na sua maior parte, fruto da criatividade dos jovens colaboradores, alunos dessa escola, muitos dos quais se revelam já como promissores escritores e poetas, bem como jornalistas, a não desmerecerem da actividade jornalística que em Barcelos é tradição.

De facto, se Barcelos não tem nenhuma individualidade tão célebre nas letras como outras terras as têm, no que respeita à actividade jornalística, possui uma tradição notável quanto à edição de jornais, conforme foi demonstrado nessa grandiosa e muito bem organizada exposição do ano de 1993, e que se denominou “A Imprensa Barcelense”.

Mas voltando à “Avenida do Minho”, não tenho dúvidas em afirmar que se trata de uma publicação valiosa, não apenas pelo seu conteúdo, pela cuidadosa ordenação dos temas, pelo aspecto gráfico, mas sobretudo, como se disse, porque se trata de uma publicação densamente povoada de vozes juvenis, vozes que deixam transparecer uma sensibilidade disponível para a investigação, para a criatividade literária, bem como para a actividade jornalística. Daí a grande diversidade de temas que vão da história à literatura, das ciências ao desporto, para gostosamente se demorarem no relato de viagens de estudo, e várias foram. Viagens que são marcos importantes na vida escolar. Aliás, todos guardamos no fundo da memória, as imagens afectivas e emotivas que viagens dessas deixaram em cada um de nós. Imagens indeléveis, a que nenhuma viagem de turismo, efectuada em idade adulta, se consegue sobrepor.

Vivemos numa época em que, como atrás se disse, cada vez se lê menos. Para a cura desse mal, a esperança está nas novas gerações, já que as outras foram desprevenidamente seduzidas por alguns meios de distracção de que participam passivamente e, quanta vez, mergulhadas em “apagada e vil tristeza”, já que a alegria de construir imagens através da leitura lhes está vedada. É uma época de fim de século considerada por muitos como desumanizada pela voragem da máquina. Uma época em que o consumismo tenta, e conseguiu já, ocupar o lugar da cultura.

É uma visão pessimista da qual me recuso a partilhar, embora não possa deixar de constatar que grandes alterações no quotidiano do Homem quase anularam o gosto pela descoberta através dos caminhos da imaginação. Essa imaginação, bem patente em muitos trabalhos a que os jovens deram forma, seduzidos pelo prazer da criatividade que a revista “Avenida do Minho” lhes proporcionou.

Mas, mais do que um incitamento à criatividade, é acima de tudo um incitamento à leitura, não só para os colaboradores, mas também para os restantes alunos, sem esquecer familiares e amigos, porque neste caso, o jornal é sempre um claro elo de ligação entre a escola e a comunidade.

Por tudo isto, a presença da “Avenida do Minho” é de aplaudir, como de aplaudir é o esforço de quem a dirige, e dos mais diversos modos colabora na sua realização. Tarefa absorvente, trabalhosa, como se imaginará. Mas também tarefa gratificante, porque fruto de um grande entusiasmo e empenhamento, aliados a uma certa dose de afectividade. Se assim não fosse, como poderia ela viver há já cinco anos?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 15 – 7 – 93

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

De novo vou falar da História de Cambeses, da sua qualidade de vida no que respeita à sua cultura secular, e a esse respeito, aflorar de novo o tema que se prende com as Solenidades Quaresmais que aqui têm lugar, em cada ano, pontualmente. Solenidades estas, tão em uso em terras de Barcelos, embora me pareça que nenhuma dessas localidades possuirá, para a Procissão dos Passos, um percurso de Via Sacra, idêntico ao de Cambeses. Percurso místico porque destinado à dramaturgia da Paixão e também porque o escadório significará subida para o Céu, penitência.

De facto, bem penosa é a subida desse escadório, não só para as crianças vestidas de anjinho e para os homens que têm de equilibrar aos ombros o pesado andor do Senhor dos Passos, mas também para os que têm de segurar com firmeza e dignidade, em dias de ventania, as bandeiras e, sobretudo, o alto estandarte com os símbolos do martírio do Senhor. Toda uma iconografia que os romeiros, em cada ano, admiram, como se pela primeira vez o fizessem. Multidão intensa que aqui acorre quase ao começo da tarde, para ouvir não só o sermão mas também o cântico magoado que a Verónica entoa e os sons, solenemente acompanhados, da banda de música que fecha o cortejo, nesta evocação vivencial dos passos da paixão.

Em que ano teria tido lugar a primeira Procissão dos Passos? Não me foi possível sabê-lo ainda com exactidão. Sei que, e segundo o Prof. Doutor. C. A. Ferreira de Almeida, a primeira procissão quaresmal do Senhor dos Passos terá sido a da Graça, em Lisboa, em 1587. Em Braga, foi instituída pouco depois e, a partir daí, deu-se a sua expansão por terras do norte. Perante esta opinião talvez seja de admitir que a procissão do Senhor dos Passos em Cambeses é anterior à construção do escadório e talvez tão antiga como a capela que, do alto do monte sacro, ostenta a data de 1678.

Muitas outras terras terão criado e depois deixado extinguir a Confraria do Senhor dos Passos e, consequentemente, terão deixado de efectuar toda essa dramaturgia intensamente vivida, que é a Procissão dos Passos. Outras vão-na mantendo com algumas interrupções pelo meio. Cambeses, porém, tem-na mantido inalteravelmente e, com ela, o rigor quanto à data e cumprimento de todo o cerimonial. Todos os irmãos da confraria assumem integralmente os cargos que lhes são atribuídos, sobretudo aqueles que, durante um ano, se movimentaram nos bastidores, para que se cumpra toda essa dramaturgia, que se desenrola ao longo de duas ou três horas, mas que levou meses, um ano, a preparar, com inteiro sentido das responsabilidades e devotamento total e onde tudo foi prevenido até ao pormenor: desde os contactos com o Padre Pregador até à escolha da Verónica, ao contrato com a Banda de Música e à ornamentação da igreja e capelas.

Andores, pálio, bandeiras, anjinhos, sob o som plangente da música e do dobrar cadenciado do sino grande da igreja matriz, tudo se movimenta acertadamente ao longo do difícil percurso que é a subida do secular escadório e, consequentemente, descida pelos arruamentos ziguezagueantes da encosta.


E por tudo isso não posso deixar de me congratular pela efectivação ininterrupta desta solenidade que vive da tenacidade do povo sem necessitar de apoios oficiais, nem de mecenatos para continuar viva e firme do respeito pelas leis ancestrais, pela sua História e pela sua religiosidade.

E quando um povo, por si só, assim decide proceder, está de parabéns. E Barcelos, a quem este povo pertence, estará, sem dúvida, igualmente de parabéns.

Crónica publicada no jornal de Barcelos de 9-4-92