quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Reparei há tempos num jornal diário com uma fotografia da “Linha da Póvoa”, denunciadora do abandono a que a mesma foi votada pela CP e, a acompanhar a foto, uma curta frase: “E ninguém se importa!”

É na verdade um triste exemplo igual a outros. Li a notícia com alguma mágoa e, por uma associação de ideias, lembrei-me dos velhos caminhos rurais que não servem a tractores e, muito menos, a automóveis e, por isso mesmo, são votados ao abandono. Como se o caminhar a pé não fosse útil sob vários aspetos, incluindo a saúde. E, ante a imagem desses caminhos centenários, surpreendi-me a reflectir.

Todos sabemos que a história de uma terra faz-se sobretudo através de documentos escritos. Mas faz-se também através das suas pedras, que o mesmo é dizer, de monumentos, e ainda através das suas ruas e praças, para só falar destes elementos. No espaço rural também a história se faz igualmente através de documentos e pedras, sobretudo a partir dos caminhos rurais, esses caminhos que em Cambeses gosto de percorrer, se me é possível.

Por essa razão, além de outras, não posso deixar de aqui falar do caminho que, do lugar de Bouçó sobe até à Igreja Paroquial, afundado entre duas quintas, caminho centenário, com uma longa história, feita de muitos passos.

Pois bem. Esse caminho de encosta, em grande parte escalavrado por enxurradas invernosas, o que dificultou os passos de quem dela precisava, tem sofrido, sobretudo de há uns anos a esta parte, as derrocadas dos muros das duas quintas, sem que os proprietários sejam obrigados a retirar pedras e entulho da via pública. E, como se isso não bastasse, há uma poça rente ao caminho, pertença de uma das quintas, que para aí deixa escapar as águas, tornando intransitável o resto do percurso num caminho que é de todos. E para dizer como o autor do artigo referido: “E ninguém se importa!” com o que se faz a este e outros caminhos.

Houve uma altura, já lá vão anos, em que a situação melhorou, devo dizê-lo: o caminho foi limpo, restaurado dentro do possível, honra seja feita à Junta de Freguesia e aos moradores de Bouçó, Lama e Vinha, que contribuíram com o dinheiro para a manutenção do mesmo. Depois, por culpa de não sei quem, o caminho voltou ao abandono e assim está. E porque é quase impossível percorrê-lo (sei-o por experiência própria) os moradores foram obrigados a deixar de o utilizar.

Pode portanto alegar-se, tal como a CP, que há poucos utentes. Pois não. E quem se atreve por um chão daqueles, impraticável sob um teto de silvas e ramaria diversa? Pode alegar-se que há uma estrada e há o automóvel para ir à igreja. Pois é, só que nem toda a gente conduz. E o que acontece é os moradores serem obrigados a dar o dobro dos passos (e muitos dão) pelo percurso alternativo, percurso estafante, sobretudo para os menos jovens e menos fortes.

Portanto, se os transtornos causados não são de levar em conta, certo será que o abandono se instalará definitivamente, tal como na linha da Póvoa, porque essa é a decisão mais cómoda.

É pena, porque é um caminho com uma longa história, um caminho percorrido durante séculos, obrigatoriamente. Claro que nas cidades a ligação à igreja não é tão intensa, por isso este texto dificilmente seria entendido por Lisboa ou Porto. Mas nas aldeias essa ligação continua, apesar de tudo. Mas isso é outro assunto.

Por hoje propus-me falar apenas de velhos caminhos abandonados, irmãos no infortúnio das modestas linhas da CP. Caminhos tão veneráveis e tão humanizados como estes que aqui falei num SOS muito possivelmente inútil, porque “ninguém se importa” apesar da sua utilidade e sobretudo da sua longa história, feita de muitos passos:

Passos leves, ainda infantis, a caminho da Catequese. Passos jovens, pressurosos, de mal contida alegria, nos dias mais marcantes da sua vida. Passos arrastados, penosos, de quem cumpre a reta final. Percurso sem passos (o último) de quem cumpriu já o percurso que lhe fora dado cumprir.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 11 – 10 – 1996

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