terça-feira, 1 de novembro de 2016

Os Chapéus de Palha de Cambeses - Separata da “Barcelos – Revista” de 1991

Situada no extremo do concelho de Barcelos, é Cambeses limitada por freguesias de Braga e de Vila Nova de Famalicão.

É terra airosa e verdejante que, por encostas onduladas, desce qual cascata, ensolarada e colorida, até ao vale do Este, para de novo se erguer pela encosta fronteira, dominada pelo monte de Santo André.

O casario, quase todo situado na margem direita do rio Este, espalha-se por muitos e variados lugares, cuja toponímia nos oferece, ora nomes de certo modo elucidativos, como Carvalhal, Souto-Covo, Bouçó, Pomarinho, Azevinhos, Outeiro, ora nos brinda com nomes por vezes insólitos, como Brasil e Peneirada, sendo de destacar este último, como o lugar mais populoso da freguesia.

É sobretudo neste lugar, cujas razões para tal nome não podemos conhecer, que se manufacturavam e manufacturam ainda, em parte, os chapéus de palha de que iremos falar, e cuja matéria-prima é a palha de centeio, cereal este cultivado nas terras secas, onde, noutras eras se cultivava o milho-alvo, uma vez que, nesta muito antiga povoação de Cambeses, os seus habitantes sempre foram agricultores.

E a propósito da sua antiguidade, não queria deixar de referir que, nos primórdios da nossa nacionalidade, e por vontade política dos grandes de então, foi Cambeses anexada à Sé de Braga e, consequentemente, transformada num couto, um dos oito coutos que, no termo de Braga, tiveram lugar.

Aos habitantes deste couto foram concedidos benefícios e, consequentemente, exigidas obrigações, situações a que se acomodaram, assim vivendo séculos. Por lameiros e por encostas semeadas de carvalhais e soutos apascentavam os seus rebanhos, colhiam os seus frutos. Depois vieram os pinheiros e, dado o seu rápido crescimento, tornou-se mais rentável esta produção florestal, pelo que cedo, os vetustos carvalhos e castanheiros deram lugar a densos pinhais (daí o adágio: “velhacos e pinhais cada vez há mais”).

Mas não foi só nas encostas arborizadas que a transformação aconteceu. O aspeto dos campos também se foi modificando quando o centeio destronou o milho-alvo, rei e senhor das terras de encosta, para mais tarde, e juntamente com o milho dos nossos dias, dar origem à alimentícia broa caseira, de mistura, sobretudo.

Mas falar em centeio não é apenas falar em pão delicioso, escuro e nutritivo. Falar em centeio é também evocar as altas cearas de longos caules verde acinzentado, cearas que, nas tardes de maio ondulavam docemente aos ventos da primavera, em campos de encosta orlados por macieiras e cerejeiras bravas.

Falar em centeio é falar das alegres e penosas malhadas de julho, sob o ardor do sol estival, o corpo crivado de sarugas agressivas. Falar em centeio é falar em palha que os bois calcavam nas largas eiras, para a quebrar, e que depois, acomodada em rotundas medas, encimadas pelo capucho de palha e pelo ramo do fim de festa das malhadas, que ali aguardava a sua vez de acudir à alimentação do gado bovino, em tempos de escassez de pastagens.

Falar de centeio é falar de colmeiros de hastes longas que, acomodados em lugar enxuto, esperavam a sua vez de renovarem os gastos colchões de palha das casas de família, ou então de se tornarem abrigo protector, defendendo do áspero sol estival.

Portanto falar em centeio é falar em chapéus de palha, imprescindíveis para do sol proteger quem, sob os seus raios tem de trabalhar, nas duras tarefas do campo.

Não sabemos quem foi a primeira mulher que teceu, com seus laboriosos dedos, as primeiras braças de fita, utilizando as palheiras aparadas de nós, nem sabemos quem, com essa fita, fez o primeiro chapéu. Sabemos apenas que se trata de uma forma de artesanato quase tão antiga como o cultivo do centeio nesta freguesia, e que em Peneirada e Souto-Covo, lugares de denso povoado, eram numerosas as mulheres que entrançavam longos metros de fita de palha, tal como ainda hoje algumas o fazem, e com ela confeccionavam os chapéus que depois vendiam.

Mas, até que o chapéu estivesse pronto a ser usado, eram várias as tarefas a que esta forma de artesanato obrigava, sendo, como é óbvio, necessário, antes de mais, a obtenção da matéria-prima: - a palha do centeio. Assim, lá iam elas pela porta dos lavradores, regatear o preço de um colmeiro, se a fartura desta palha era evidente, ou suplicar a venda, se esta escasseava.

Feito o negócio, era o grosso colmeiro carregado à cabeça pela compradora e instalado em casa, ao abrigo das intempéries. Dele se ia retirando pequenas porções de palha, conforme as necessidades. E assim, haste por haste, esta traçada em palheiras de comprimento diverso, ou seja, do tamanho máximo entre dois nós de caule, desaproveitada que era a parte mais grossa, junto ao pé, e a parte mais fina, junto da espiga.

Obtido o molho de palhas de tamanho desigual, e com cerca de dez centímetros de diâmetro, era este posto a demolhar. Logo que as palhas se apresentavam macias e flexíveis, tiravam-se da água e punham-se a escorrer. Seguidamente a artesã enrolava-lhes uma faixa de pano grosso para se proteger da humidade e, colocando-as sob o braço esquerdo, ficava com as mãos livres para manufacturar metros e metros de fita entrançada, que ia dependurando no braço direito. Fita de seis palhas, de oito e até de doze, conforme a necessidade. E assim, minuto após minuto, lá ia crescendo a grande meada que, pendurada do braço, quase rentava o chão. Parada ou a andar, sempre os seus dedos se moviam com uma velocidade incrível, sem uma falha, uma distracção, para que a fita saísse rectilínea, de bordos impecáveis.

E quando a quantidade de voltas da longa meada era já intransportável para o braço que a sustinha, dava-se por terminada aquela tarefa e iniciava-se outra meada. Era então que os menos hábeis da família, geralmente crianças, de tesoura em punho, se lançavam nos acabamentos, ou seja, “tosquiavam” a fita, cortando as pontas das palhas entrançadas com todo o cuidado.

Depois era essa fita mergulhada em água para que, humedecida, se tornasse maleável, e iniciava-se então a confecção do chapéu, tarefa esta que só os mais hábeis executavam, pois exigia uma especial atenção, para que a copa saísse na medida justa, a aba direita, oval ou redonda, e os pontos da grossa linha de algodão muito certos, bem rematados. E assim, munidas de grossa agulha e fio de algodão, apoiando o trabalho numa mesa apropriada, lá iam cozendo os primeiros decímetros de fita, dando forma a uma copa redonda ou oval, de acordo com a qualidade da palha e o modelo que afeiçoavam constantemente, com os dedos ágeis, e com o auxílio de um maço de madeira, mais ou menos do tamanho da copa alta de alguns modelos de chapéu.

Quando a aba atingia a largura pretendida, era esta em alguns casos, orlada com um bico feito de fina trança de quatro palhas. Um bico simples ou elaborado em ziguezague, o que dava um aspeto rendilhado ao chapéu. Os chapéus mais antigos que se conhecem eram de copa alta, ligeiramente pontiaguda, e aba redonda. Depois surgiram outros de copa oval, suficientemente alta para se enterrar bem na cabeça, e de aba não muito grande e, evidentemente, oval, muito utilizados nos trabalhos agrícolas. Estes chapéus eram de palha mais grossa, trança geralmente de seis palhas.

Posteriormente surgiu um modelo de copa baixa e larga, aba redonda, enfeitada com uma fita de seda, e que era possivelmente imitação das capelines que as elegantes dos anos quarenta ainda usavam nas cidades. Estes chapéus eram de palha fina e de fino entrançado, de dez ou doze palheiras. Havia, nessa altura, os chapéus de palha ferrã que, como se sabe, é a palha, neste caso de centeio, ceifada antes de estar completamente espigada. Uma palha muito fina e branca, da qual se faziam chapéus mais elaborados, para serem utilizados fora do trabalho e quando o sol assim o exigia. Eram chapéus bonitos e delicados, branqueados em caixas fechadas, com o auxílio do fumo de enxofre, que ardia, devidamente acautelado, dentro da caixa, ao lado dos chapéus.

Havia ainda os “rambóias”, chapéus de entrançado em várias cores, e onde o vermelho, azul, amarelo, verde, etc., se cruzavam em fita, geralmente de palha menos fina e de seis palheiras, que eram tingidas em púcaros fervendo nas rústicas lareiras, as anilinas compradas numa qualquer drogaria de Braga ou Barcelos, e onde as palhas, devidamente aparadas, eram mergulhadas, para se obter assim a cor desejada.

Estes chapéus eram de copa redonda, não muito alta, e aba arqueada e pequena, chapéus alegres, a que o nome “rambóia” se ajustava muito bem. Com esta forma, mas em palha de cor natural, apareceu outro modelo, mais tarde, e que ainda hoje se usa, levando, geralmente, uma fita de seda azul-escura na copa.

Cada chapéu, e de acordo com o modelo, levava largos metros de fita de palha, que os dedos dessas mulheres agilmente coziam. E digo ”mulheres” porque esta era uma tarefa exclusivamente feminina. Se acaso algum homem, porque desocupado, se atrevesse a entrançar umas braçadas de fita, era de imediato objecto de troça dos seus conterrâneos.

Era, na sua maioria, gente das classes menos favorecidas, vivendo em casas de pedra solta e tabuado, quando não era só de tábuas, a casa, que mal os defendia da chuva e do frio.

De facto, as mulheres e filhas dos lavradores, as criadas das casas de lavoura e as jornaleiras diárias, não faziam fita nem cosiam chapéus, e olhavam de modo que poderíamos classificar de depreciativo, essas mulheres que se mantinham “de costas direitas”, embora os seus dedos laboriosos se mantivessem ativos todo o dia e parte da noite, em longos serões à escassa luz do petróleo.

Eram mulheres que raramente trabalhavam na lavoura, ocupadas dia e noite numa tarefa que seria fastidiosa se não se tratasse de uma ocupação que lhes permitia estarem sentadas ou passearem-se pelos caminhos da freguesia, atentas ao mais insignificante acontecimento. De um modo geral, qualquer facto era suficiente para lhes encher uma tarde de conversa, à fresca, nas tardes calmosas, à hora em que as outras se curvavam de suor pingante, para o chão humoso e exigente. Eram mulheres que revelavam um modo especial de pensar e de agir. Assim, lá iam pelos caminhos, passo lento e dedos ligeiros, olhos e ouvidos atentos, levando consigo, sob um braço, o molho de palhas húmidas e aparadas, a que já nos referimos, e do qual retiravam, palheira após palheira, toda a matéria prima de que necessitavam. E enquanto no outro braço, a longa meada de fita entrançada se tornava cada vez mais volumosa, o molho de palha ia diminuindo até se extinguir.

Numa comunidade de agricultores como Cambeses, não admira pois que as “mulheres da “fita” não gozassem de muita consideração. Elas eram diferentes das que, de estrelas a estrelas, andavam numa roda viva, da cozinha para as hortas e cortes, e dali para os campos. E estas, porque mais bem alimentadas, ginasticadas, ágeis e sempre atarefadas, não viam com bons olhos essas mulheres “da bisbilhotice e da preguiça” diziam, esquecendo-se que grande parte delas eram mulheres débeis, porque mal alimentadas. Mulheres bisbilhoteiras, não o eram com certeza na sua totalidade. Mas eram, pode-se afirmar, a gente mais pobre da freguesia, já que a quantia paga por cada metro de fita manufaturada era irrisória.

Para comercializar os chapéus, eram estes transportados em sacos enormes, pelo combóio que no apeadeiro parava, e os recebia no forgão, como se se tratasse de excedentes de bagagem de um qualquer passageiro, que neste caso era a mulher que os comercializava.

Depois houve alguém, na freguesia, que chamou a si e de forma organizada, este tipo de negócio, adquirindo os chapéus manufacturados durante o inverno, e que ia armazenando, para no verão os vender pelas feiras e casas comerciais. Mais tarde comprou uma máquina apropriada e os chapéus deixaram de ser cosidos à mão.

Deixou assim de ser puro artesanato, uma vez que a máquina passou a ser utilizada. Outros modelos vieram. Passou-se a fazer sacos de praia, seiras, etc., e a comercialização aumentou, ao mesmo tempo que esta forma de artesanato se tornou sofisticada, menos pura.

No entanto a fita de palha, essa continua a entrançar-se em Cambeses, manualmente, tal como há cinquenta anos, sessenta e muitos mais talvez. Possivelmente há mais de cem, como ainda há bem pouco tempo um quase nonagenário desta freguesia afiançava.

Porque os chapéus de palha de centeio, nesta era dos plásticos, não puderam ainda ser substituídos com total êxito, por qualquer matéria prima sintética, acreditamos que esta forma de artesanato, poderá continuar a ser minimamente rentável para quem dela se queira ocupar.

Mas tirando as mais idosas, que ainda em Cambeses fazem “fita”, depois delas será difícil encontrar quem pela fita de palha se interesse, pois que da gente nova, e até de meia-idade, poucos serão os que desta forma de artesanato se ocupam agora, dada a sua falta de rentabilidade. Preferem ocupar-se de outras profissões mais rentáveis, como é óbvio que as há, felizmente para eles. Isto sob o ponto de vista económico, evidentemente.



In Barcelos – Revista, 2ª Série - 1991- Nº 2. Director Sebastião Matos. Barcelos, Câmara Municipal, págs. 223 – 229.

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