terça-feira, 18 de outubro de 2016


“Há boa água em Cambeses, ainda, suponho. Há em Bouçó boa água para beber, julgo poder afirmá-lo”. – Foi o que assim pensei, ao olhar a água que, vinda do interior do monte que lhe é sobranceiro, jorra dia e noite na fonte pública existente no lugar. Fonte que veio substituir a antiga fonte de mergulho que alimentava a necessidade das casas onde então havia muitas crianças. Mas não foi dessa fonte desaparecida que me lembrei, olhando a água. Lembrei-me antes, talvez por uma associação de ideias, dessa longínqua Singapura, cidade que em tempo de férias me foi dado admirar. Capital de um país independente, não é tão independente assim, porque depende dos países vizinhos para poder sobreviver. E digo “depende” porque é essa a palavra exata.

E no entanto Singapura, cidade jovem, densamente povoada, capital de um país em contínuo crescimento económico, rica, moderna, semeada de arranha-céus onde se instalaram bancos poderosos e grandes hotéis, parece, à primeira vista, ser auto-suficiente e não necessitar de nenhuma ajuda. Mas necessita e muito, embora, aos olhos do turista, pareça quase um paraíso.

E de facto é essa a imagem que da cidade se colhe, quando se percorre as suas ruas: os edifícios coloniais do século passado estão bem conservados e aproveitados, bem como muitos outros vestígios da sua curta história. Os passeios estão continuamente pejados de gente jovem, sorridente, aparentemente educada, e o trânsito intenso é bem ordenado. Há grande profusão de estabelecimentos e centros comerciais, onde orquídeas florescem à entrada, Ruas escrupulosamente limpas e bem iluminadas à noite, mas rigorosamente vigiadas, para que a limpeza e a segurança dos cidadãos não seja letra morta. 


Pois bem, essa cidade rica, moderna, ordenada, florescente, depende, como se disse, dos seus vizinhos e sem eles todo esse esplendor acabaria em bem pouco tempo e a qualidade de vida também, porque lhes faltaria o principal para viverem: a água.

Água que vai (pude observar) em canalizações de larguíssimo diâmetro, ao longo da ponte, que modernamente liga a ilha de Singapura à Malásia. Ponte que é sobretudo de arrojada engenharia moderna, tal como são as estações do metro, floridas, apesar de subterrâneas, os arranha-céus de muitas dezenas de andares, onde se nota um certo gosto pelo belo, nos vários arranjos artísticos que tornam mais leves e graciosas essas grandiosas e mastodônticas construções.

Resumindo: Esta cidade moderna, segura, rica, onde as orquídeas florescem exuberantemente, das quais a vermelha é, poeticamente, a flor oficial do país, esta cidade à beira mar nascida, cidade de poderoso comércio, é uma cidade frágil, apesar de se manter sem a ajuda de terceiros porque, como disse, lhe falta um dos elementos mais necessários à vida: água doce.

“Se nos jardins do palácio governamental jorrasse a frescura das águas desta fonte de Bouçó, se os de Singapura tivessem um só dos nossos rios, sem dúvida que ele seria um rio cristalino e puro. Um rio sagrado… - penso ainda, ao afastar-me acompanhada pelo som cristalino da água caindo, - E nós?”

Para quê falar da nossa vergonha?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 19 – 5 – 1994

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