segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Aproveitando uma pausa domingueira em Cambeses, vou folheando distraidamente a revista – magazine do JN, com fotografias do Oriente, essa parte do mundo que me foi dado visitar e da qual trouxe um emaranhado de lembranças que, a pouco e pouco, vou desenredando.

Lembranças e também uma espécie de ternura muito especial pelo povo da China continental, sacrificado desde sempre aos caprichos dos grandes senhores, no tempo dos imperadores, sacrificado, ainda hoje, à inflexibilidade das leis ditadas pelos novos imperadores, que vieram substituir os das dinastias.

Conhecido como sendo um povo paciente, persistente, amigo de arriscar no jogo, é também um povo muito supersticioso. E, a propósito, vem-me à lembrança um episódio banal, acontecido em Xangai:

Tínhamos acedido ao convite para visitar uma casa típica de um operário chinês, e lá fomos, cheios de curiosidade, embora prevenidos quanto à inevitável encenação em casos semelhantes. Recebidos pelo dono da casa, um homem de meia-idade, de trato afável, como o são no geral os chineses, pudemos através do interprete, expor-lhe as nossas questões, às quais foi respondendo gentilmente, tecendo, como seria de esperar, elogios ao Poder político, que lhe proporcionou a possibilidade de adquirir a casa onde vivia com os familiares, incluindo os pais dele. Uma casa que teríamos de considerar singela, rudimentar, se a compararmos com grande parte das casas que vemos pelas aldeias e vilas do distrito; uma casa que, se comparada com muitas da parte antiga de Pequim, era indiscutivelmente óptima.

E enquanto o dono da casa falava, a esposa, discreta e sorridente, como é próprio das chinesas, veio sentar-se na sala ao nosso lado, sem interferir no diálogo que o marido continuava a manter com qualquer um de nós. E, já no final da conversa, alguém se lembrou de tirar uma fotografia com a dona da casa e, apontando a máquina, pediu-lhe por gestos para se colocar numa posição favorável à fotografia.

Inesperadamente, porém, a mulher fez uma expressão de pavor, levantou-se bruscamente e, quase a correr, saiu da sala, deixando-nos perplexos e… mudos.

Mais tarde, viemos a saber que os chineses não gostam de tirar fotografias com flash porque a luz pode roubar-lhes um pedaço da alma.

Devia ter sido essa, também, a razão que, na dinâmica e ocidentalizada cidade de Hong-Kong, levou duas raparigas chinesas a fazerem igual recusa perante a máquina fotográfica: uma recusa peremptória, definitiva, e sem sorrisos, o que, de certo modo nos surpreendeu, pois tratava-se, não de uma mulher de meia-idade, discreta e tímida, como a de Xangai, mas de duas recepcionistas de um restaurante flutuante, frequentado por turistas de todo o mundo, muito belas, espectacularmente vestidas de seda vermelha, aparentemente cultas e delicadas e, por dever de ofício, conhecedoras dos costumes “dos bárbaros ocidentais”.

Mas a superstição é algo que amedronta e, amedrontando, interfere muito no comportamento das pessoas. Vimos isso em Macau e até nos chineses que professam a religião católica.

E por cá?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 12 – 5 – 1994

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