sexta-feira, 15 de julho de 2016

DAQUI DE CAMBESES

Já aqui falei do rio Este, da sua decadência e morte, essa mesma morte que ameaça o Cávado da minha clara lembrança, quando alvoroçada ia de Cambeses à cidade e nele podia pousar o olhar.
De facto, nas poucas vezes que fui a Barcelos fora dos dias de feira, duas coisas havia que sempre me deslumbravam: as vetustas paredes dos Paços dos Condes–Duques debruçadas sobre a placidez das águas e esse rio que então era claro, translúcido, belo.
Não sei a razão dessa minha predisposição ao deslumbramento, sei que era algo vindo de muito longe e sei também que não era sem uma curiosidade emocionada que me aproximava dele, esse rio calado, translúcido, a deslizar brandamente poderoso, senhor de uma força inexplicável que me atraía. Densa e misteriosa força a irradiar das águas, que por entre várzeas frescas e produtivas, saltava alegremente os açudes na pressa de ver as terras de Esposende, onde chegam as marés e os voos planados das gaivotas.
Um rio que era promessa de fresco banho na piscina natural, onde aprendiam a nadar aqueles que facilmente ali se podiam deslocar em dias estivais, os rapazes evidentemente, que às meninas estava vedada tal satisfação, sobretudo se pertenciam a famílias mais tradicionais.
Mas o rio, se era a interdição, era também a sedução, o fascínio, o mistério, numa forma imprecisa de o contemplar, de nele repousar o olhar, embora Barcelos não perdesse tempo, creio, a contemplar o curso remançoso do rio, como acontece com outras povoações ribeirinhas. Parecia mesmo que Barcelos vivia de costas voltadas para ele, como se fosse uma outra cidade.
E deste modo a cidade, que pouca importância parecia dar ao seu rio, quando finalmente se quedou a olhá-lo, foi para constatar, estupefacta, que os homens tinham fixado a atenção nele, não para lhe repousar o olhar, mas sim para lhe infligir cruel e cobarde agressão, porque rio indefeso. Crime só possível porque a imprudência e desleixo de uns quantos permitiu que se concretizassem os propósitos de alguns em quererem enriquecer de qualquer modo e o mais depressa possível.
E por isso o claro e translúcido rio da minha lembrança adoeceu e, moribundo, não tardará a morrer tal como morreram já o Este, o Ave, o Leça e outros mais, tal como podem morrer as fontes das nossas aldeias, as minas de água que no subsolo correm e são razão de vida dos homens e dos animais, os pequenos regatos, alguns deles igualmente ameaçados com projectos industriais sempre poluentes, embora de início se apregoe o contrário.
E tudo isto acontece porque as Leis ainda não têm força suficiente para conter tal onda de crimes e também porque a ignorância e ganância de alguns permite que isto aconteça.
Mas, até quando?


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 2-7-1992

Sem comentários:

Enviar um comentário