quinta-feira, 21 de julho de 2016

Há palavras e expressões que, de tanto serem usadas, perdem a sua força, a sua acutilância e, pura e simplesmente embotam, tornam-se inúteis.

Há assuntos que, de tanto se falar neles, endurecem os ouvidos de quem tinha por obrigação escutá-los, tornando-se assim inútil a persistência de alguns que, tendo sensibilidade e senso moral, se preocupam com o seu semelhante e, sobretudo, com o destino das gerações vindouras.

E tudo isto vem a propósito de uma surpresa que, sem querer cair no exagero, me deslumbrou, posso afirmá-lo. Foi ali, nos arredores de Braga, mais precisamente em Palmeira, ao termos tido o privilégio de nos ser franqueada uma visita ao interior do palácio, antigo Paço, onde os dignitários eclesiásticos encontravam o necessário repouso.

Edifício bem conservado, fiel à traça barroca inicial, guarda no seu interior magnífico conjunto de obras de arte, sabiamente restauradas, e expostas aos olhos de quem ali chega para as admirar, e que vai desde móveis de arte portuguesa e quadros, aos tapetes e objectos de adorno. Gentilmente ciceronados, tudo pudemos vagarosamente admirar. 
Depois foi o convite a um passeio pelos jardins e arruamentos, cuja traça continua igualmente fiel à arquitectura inicial. E assim transpusemos a porta em direcção ao exterior, guardando na memória, emotivamente, todo esse conjunto de obras de arte, das quais a posse de um dos mais singelos objectos nos tornaria felizes.

E foi então que a surpresa aconteceu e nos deslumbrou: o RIO. O rio até onde os jardins desciam. Um rio largo, manso, translúcido, senhor de peixes e frescas margens: o Cávado.

E a surpresa foi tal que todas as imagens dos objectos de arte que a memória afectiva trazia consigo, desapareceram para dar lugar à visão paradisíaca, rara, de um largo rio transparente, cristalino e saudável como aquele.

E a pergunta vai inevitável, a acordar laivos de uma revolta inútil: - Como foi possível, em tão poucos anos, e depois do triste exemplo do Ave, permitir-se que, um pouco mais abaixo desse lugar paradisíaco, o curso desse rio se tornasse naquilo que em Barcelos também se chama Cávado, e cujo aspeto dispensa, por tão evidente, qualquer sombrio adjectivo? Pergunta sem resposta, porque parece não haver quem queira ou possa responder.

Por isso deixei o Rio, rara visão de que meus olhos não se queriam apartar, calando as interrogações, as recriminações dirigidas sobretudo a quem, tendo o poder na mão, nada fez para evitar o desastre destas águas.

E agora? Vão deixar que aconteça o mesmo às fontes e poços e regatos de cada uma das muitas freguesias de Barcelos?

A Fatura do rio Cávado aí está para se pagar. O preço, todos o imaginam, e é bem alto já. Vamos esperar calmamente, indiferentes, que outras faturas mais pequenas, mas igualmente difíceis de pagar, surjam em cada freguesia, em cada lugar, em cada campo do Concelho?

“Há assuntos que, de tanto falar neles, endurecem os ouvidos de quem os poderia escutar”… Eu sei. No entanto, neste mesmo jornal, várias são as vozes que, em defesa da Água se erguem. Neste e noutros lugares.

Será que ainda há lugar para a esperança?

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 10-6-93

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