domingo, 24 de julho de 2016

Hesitei bastante antes de aflorar o assunto que constituirá esta minha crónica. Hesitei bastante, por vários motivos, mas hoje, ao ler uma notícia de que, em Braga, iriam ser tomadas diversas medidas no sentido de disciplinar a atuação dos vendedores ambulantes durante as solenidades da Semana Santa, não resisti e, por isso, vou aqui falar do que observei em dia de Passos, porque possivelmente o mesmo terá acontecido durante as solenidades dos Passos na cidade de Barcelos, e acontecerá também noutras localidades onde essas solenidades têm lugar, e que é o fenómeno proliferante da venda ambulante.

Nada tenho contra os vendedores ambulantes, cuja vida, por vezes, é bem dura, e a sua atuação nada teria de grave se não constituísse, a meu ver, profanação de um espaço que, em princípio devia ser espaço de reflexão, de religiosidade, de silêncio até. Mas o que se observava ao longo dos diferentes acessos ao Santuário era uma insólita feira dos mais diversos artigos, desde cutelarias a roupa interior, desde loiças a ferramentas e, como se isso não bastasse, havia também a venda de cassetes e a música, que se fazia ouvir, a par dos pregões que, em locais assim sempre acontece, e nada tinham a ver com a música sacra que a ocasião exigia.

Antes de continuar, devo dizer que, neste grupo de vendedores ambulantes, não incluo as vendedoras de regueifa e de doces, presença tão tradicional em todas as festividades, porque essas sempre foram mulheres discretas, respeitadoras da hora e local, cuja presença sem alaridos em nada perturba o ambiente de religiosidade histórica que se pretende viver. Ambiente de religiosidade vivida através da dramaturgia da paixão, ao qual toda a freguesia se devotou, e bem notório era o empenho dos homens, o seu sentido de responsabilidade porque mais solicitados para o momento, sem esquecer as mulheres, mais na sombra, mas igualmente ativas.

Julgo não exagerar, se disser que toda a freguesia estava ali porque aqueles que, por qualquer motivo, não puderam subir até à igreja, sem dúvida que acompanharam, das suas casas, o sermão transmitido por amplificação sonora, e escutaram os sons potentes dos instrumentos musicais, bem como o dobrar plangente do sino grande, e ainda o cântico que, na voz bonita da Verónica, se elevava por cima da multidão. Uma voz segura e tão bem modelada que se diria ter estudado canto, essa voz de uma jovem de Cambeses.

Igualmente todos aqueles que participaram na Procissão evocando diversas figuras bíblicas, e que não eram só crianças, como antigamente, mas também adultos, os quais impressionavam profundamente quem assistia ao desfilar da Procissão e muitas centenas eram os vindos de longe, a ajuizar pelas inúmeras viaturas que juncavam bermas de estradas e caminhos, ocupando todos os espaços onde era possível estacionar e que ali vieram atraídos pela fama de algo de que Cambeses se poderia orgulhar.

Mas a fama é moeda de duas faces, e onde há multidão há possibilidade de negócios, lucros, e aconteceu que o desejo de lucro atraiu vendedores cuja profissão respeito. Mas os locais de venda deveriam ser outros, mais distantes do espaço que, em princípio não deveria ser perturbado com atuações profanas, um espaço destinado exclusivamente às solenidades evocativas da paixão de Jesus Cristo, esse mesmo que um dia expulsou do Templo, com indignação, os vendedores que ali faziam seus negócios.


Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 8-4-93

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