quinta-feira, 14 de julho de 2016

DAQUI, DE CAMBESES


Ao tentar reconstituir a História desta terra que já se chamava Cambeses antes do nosso primeiro rei se chamar Afonso, ao tentar reconstituir a sua vida, ao longo de séculos, de uma coisa não temos dúvida: - que foi terra poderosa se tivermos a coragem de a comparar com a aldeia rural da primeira metade deste século, uma aldeia cheia de privações e carências de toda a ordem.

Terra de tal modo abandonada pelo poder, que os habitantes diziam, por chalaça, que a Câmara se tinha afogado debaixo da ponte e que já não existia, pelo menos para a freguesia de Cambeses.

Hoje o panorama é diferente do princípio do século, apesar de nessa altura existir já uma estrada a atravessar a freguesia, uma linha de caminho-de-ferro e uma escola. Mas a estrada desse tempo, que levou a completar mais de 70 anos a completar, só em 1972 se pode considerar uma estrada minimamente aceitável.

Quanto ao caminho-de-ferro, quando ele aqui chegou, foi apenas para cortar campos produtivos, demolir muros, fazer trincheiras e aterros que desfiguraram a paisagem sem que os seus habitantes lucrassem visivelmente com tais sinais de progresso. Só mais tarde os representantes do povo viram os seus esforços coroados de êxito com a criação do apeadeiro, num lugar onde a estrada atravessa a linha e onde, desde então, sempre houve guarda da passagem de nível. Por uma curiosa coincidência, o lugar onde se situa o apeadeiro já se chamava “lugar da guarda” muito antes de a freguesia sonhar com a estrada e muito menos com o comboio. Talvez o topónimo “guarda” esteja relacionado com o funcionamento da administração do Couto. Não sei.

Sei, isso sim, que Cambeses é hoje uma terra regularmente servida por transportes ferroviários, que a população largamente aproveita para se deslocar aos seus empregos, nas cidades mais próximas ou, no que diz respeito à população mais jovem, para frequentar estabelecimentos de ensino. Quanto ao ensino primário, tem como se sabe, uma escola moderna, com capacidade, segundo julgo saber, para o triplo dos alunos que, como em toda a parte do país, cada vez são menos. Tem estradas pelo interior da freguesia, novas, embora de traçado irregular, com lombas e curvas que poderiam talvez ser atenuadas, se tivesse havido uma maior fiscalização e cuidado na construção das mesmas. Acabaram-se as fontes de mergulho na quase totalidade, e as suas águas continuam, milagrosamente, a ser boas.

Daqui se conclui que, em alguns aspectos, a qualidade de vida melhorou espectacularmente em Cambeses. Aspectos materiais, sobretudo. Mas, e os outros valores?

De entre eles, atrevo-me a perguntar pelos valores espirituais (não os religiosos, porque estes me ultrapassam) valores que vemos cultivarem-se em muitas freguesias do Concelho e que são remédio para a ameaça do individualismo a que muitas terras estão condenadas, valores espirituais como sejam as diferentes formas de arte e cultura.

Não há um grupo etnográfico, nem coral (à exceção do que atua, e muito bem, nos atos de culto da igreja paroquial). Nem grupo de teatro, nem uma biblioteca, por pequena que seja. Nem, o que é importante, um simples centro paroquial, de convívio, que pudesse atenuar esse individualismo frio, materializado e exibicionista, porque negativamente competitivo, que domina a actual civilização e à qual Cambeses, como muitas outras aldeias, começa a entregar-se.

Porquê esta passividade?

Publicada no jornal de Barcelos em 14-7-1992


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