segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Uma das imagens que gosto de evocar, evocando Goa, é a dos seus rios, dos quais já aqui falei, sendo o rio Sal o mais familiar para todos nós, que alojados estávamos perto deste rio, tal como os outros dois, mais ao norte, o Zuari e o Mandovi, poderosos e de grande importância na economia goesa.

Mas há outros rios pequenos, de pouca água, que para além de refrescarem a terra por onde passam, nenhuma outra vantagem terão para essa economia a não ser oferecer ao turista que experimente aventurar-se pela floresta, um cenário intacto na sua pureza essencial.

Rios pequenos que atravessam a floresta, de entre os quais o mais fascinante é o rio Dushagar que, antes de ser rio é cascata, a precipitar-se torrencialmente pela vertente, até se deter numa espécie de lagoa circular que amansa as suas águas e depois de as deixar correr pela floresta densa, num leito profundo, semeado de rochas xistosas, leito escavado ao longo de milénios.

Rio Dushagar, ou seja, rio de leite (traduzido) na brancura das suas espumas, precipitando-se em cascatas pela vertente, esse lugar onde não chegaria notícia da civilização, não fosse a passagem do comboio por sobre o leito da cascata, a meio da vertente, em alto pontão que a engenharia construiu. O único elemento de civilização ali presente, talvez para que os passageiros finalmente se maravilhem com os prodígios de uma natureza poderosa e sábia.

Mas se os passageiros podem, em parte, observar a queda impetuosa das águas, todo o restante percurso do rio Dushagar lhes é vedado ao olhar, sobretudo o agressivo leito depois da cascata.

Este percurso que tivemos de vencer para atingir a cascata, sem outra alternativa que não fosse a de saltar de pedra em pedra, rodeada por um cenário de árvores, água, montanhas, o oposto de um cenário conservado para turista ver comodamente e pagar por essa comodidade. Um cenário intacto na sua pureza inicial, antecedido por um outro idêntico, que tivemos de percorrer, até atingir as proximidades deste rio.

Cenário de árvores, rios e veredas que fomos desvendando, instalados em jipes seguramente conduzidos por experimentados motoristas goeses, habituados a estas andanças pela floresta. Experiência confirmada na decisão com que desciam as pequenas ribanceiras, atravessavam a água dos rios, cujo leito de seixos era suficientemente sólido para aguentar o impacto das quatro rodas e logo subir a ribanceira da margem oposta, para continuar pelos trilhos da floresta e, daí a pouco, outros rios atravessar.

Rios de floresta de pouca água, a par de outros que de leito seco esperavam pacientemente pelas chuvas das monções que lhes hão de restituir a vida e o dinamismo das suas águas.

Rios tímidos e transparentes, onde já no regresso, ao entardecer, deparámos com grupos de homens indianos lavando o corpo num hábito de higiene muito próprio deste povo, e que talvez não seja do conhecimento dos ocidentais, porque outras imagens por cá divulgadas, mais sensacionais, serão mais susceptíveis de captar audiências para os meios de comunicação as divulgarem.

Rios de Goa, rios amados pelo povo, rios que purificam como se fossem prolongamento desse longínquo Ganges. Rios puros, mesmo quando as suas águas, por razões geográficas, são barrentas e densas. Rios amados. Em contraste com os nossos tão mal amados rios, estes rios desta desgastada Europa.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 30 – 3 – 1995 

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