quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Naquela época, o Natal era mais do que a ceia farta e sobremesas que só naquela altura comíamos.

Naquela época, o Natal era mais do que a azáfama na cozinha e a chegada dos avós com as suas misteriosas malas.

Naquela época o Natal era mais do que o findar de jejuns e abstinências, mais do que uma ceia diferente. Era a festa pela qual esperávamos desde meados de outubro, sem saber por que esperávamos. Sabíamos apenas que havia algo de místico e de misterioso, que até a essa noite nos conduzia.

Daquela época não guardo, portanto, lembrança de brinquedos espectaculares, esses que pouco esforço de imaginação exigem das crianças, e se destinam, muitas vezes, a serem aplaudidos e admirados pelos adultos, e também invejados pelos de bolsa mais magra.

Dessa época me ficaram na lembrança, mais do que a obtenção do desejado brinquedo, doces imagens do Natal popular, ingénuo e límpido, sem as seduções do consumismo prontamente adotado pelos citadinos, e só mais tarde pelos outros.

Daquela época não guardo lembranças desse pinheiro exótico que nada tinha a ver com os pinheiros bravos dos nossos montes e que gentes de outros países convencionaram chamar “Árvore de Natal”.

Daquela época não guardo lembranças de renas e trenós e de branca neve, e muito menos de um obeso Pai Natal com o saco repleto de brinquedos.

Dessa época guardo, isso sim, a imagem do presépio monumental que os rapazes da freguesia construíam num recanto da igreja, e do pequeno presépio que toscamente tentávamos imitar, num recanto da nossa sala, aonde chegavam, vindos da cozinha, o cheiro da canela e do açúcar, o som de palavras soltas e do vaivém dos passos.

E com esse frenesim as chegadas e as partidas, o trânsito das pessoas que, de olhar iluminado, iam consoar “lá” ou vinham “cá”. Os avós, a tia que vivia só, a prima viúva, as criadas (era assim que então se dizia), as quais passavam no caminho, ao fim da tarde, com o cesto da consoada à cabeça, coberto por toalha de linho, o qual escondia o recheio que tornaria rica a ceia na casa pobre dos pais.

Dessa época guardo, com serena emoção, a lembrança das novenas do Menino, dos cânticos acentuando o recolhimento íntimo, e da fé com que antecipadamente vivíamos o Natal, pelas madrugadas frias de dezembro. Novenas do Menino, a que se assistia à luz pardacenta do alvorecer, as quais eram abrilhantadas por uma tuna composta, entre outras, pela rabeca do Sr. Camilo, pelo violão do Joaquim do Rego e pela flauta do Zé da Vinha. Cânticos entoados pelas vozes soltas das mulheres e das raparigas: cânticos vigorosos, repercutindo-se na abóbada, onde S. Tiago – Padroeiro as olhava complacente.

Era um Natal vivido com simplicidade, na noite fria, onde estrelas cintilavam, e onde havia, nas casas, o lume de boa lenha que para esta noite se guardava. Fogueira a bailar alegremente, fazendo com que perto dela todos se reunissem fraternos e mais alegres, nos jogos que, com pinhões, as crianças improvisavam sob o olhar complacente e paciente dos adultos.

Não havia troca de prendas, nem tal era necessário, porque havia a espontânea troca de gestos fraternos, de palavras suaves, de olhares afetuosos e límpidos, que faziam daquele tempo um tempo que sentiam ser diferente, um tempo de mistério, de espectativa, de maravilha.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 21 – 12 – 2000

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