terça-feira, 23 de agosto de 2016

Numa das minhas andanças pela Biblioteca Municipal do Porto, tive nas mãos um volume da autoria do Pe. Carvalho da Costa, presbítero secular que nasceu em 1650 e faleceu em 1715. A sua Corografia Portuguesa, datada de 1706, nela se referindo ao Couto de Cambeses nestes termos:
he abundante de centeyo, linho galego, frutos & bastante vinho, levando o Alcayde Mor os quartos dos frutos da terra. Havia então em Cambeses cento e oitenta vizinhos.
E após a leitura destes fragmentos da sua obra, deixei-me ficar no silêncio da biblioteca, reconstituindo mentalmente um pouco da história deste couto que, embora extinto no século XIX, continuou a ser chamado de Couto de Cambeses ou, simplesmente, Couto. E apesar de ter perdido a sua câmara e tribunal, e outros sinais de Poder, era ainda, nos finais do século passado, e segundo Pinho Leal, no seu dicionário geográfico uma vila, tendo na Casa do Paço o símbolo desse poder perdido.
No entanto o pagamento de foros à antiga casa continuou. Há de haver em Cambeses quem ainda se lembre de ter observado a preocupação dos pais, ou outros familiares, em juntar os valores necessários para pagamento desse foro. E há quem se lembre também de olhar com um certo arrepio as janelas gradeadas, voltadas para o caminho, para lá das quais, dizia-se, fora a cadeia. Cadeia não apenas para os habitantes, mas muito possivelmente também para os foragidos, que vinham de longe, até de Lisboa, ali se acoitarem sob a protecção do alcaide-mor, porque as leis assim o permitiam, protecção que, como é obvio, seria obtida à custa de valores ou de serviços obrigatoriamente cumpridos. Quando não, era a penalização.
Depois novas mudanças surgiram. Um a um, os foros foram sendo remidos, e os habitantes de Cambeses, finalmente libertos dessas obrigações, enquanto a casa lá continuava inalterável. Depois a casa passou a mãos particulares. Nessa altura já o povo tinha deixado de pagar os quartos dos frutos da terra ao Alcayde Mor.
Dela guardo ainda a lembrança das muitas janelas de guilhotina, na sua moldura de granito em arco, a embelezar a longa fachada cor de amarelo ocre, as quais, sempre fechadas, acentuavam o seu ar de mistério.
Lembro-me que, da casa onde nasci e cresci, gostava de olhar essas muitas janelas da casa, para mim carregadas de memórias, algumas tenebrosas, segundo a voz popular, outras de grandeza e poder. Parecia-me então que, para lá das janelas fechadas, emanava da casa um certo encanto, um fascínio alicerçado na dignidade que o tempo sempre empresta às grandes casas.
Depois a casa mudou de donos uma vez mais e foi então que a sua sentença de morte foi lavrada e o juiz que tal sentença ditou, por mais incrível que pareça, foi a Câmara Municipal de Barcelos, da época, atitude de certo modo inaceitável, tanto mais que não se tratava de um desses solares de finais do século XVIII, construído por qualquer visconde que, à custa do dinheiro tivesse obtido um efémero título nobiliárquico e, consequentemente, se apressasse, tal como hoje acontece com os novos ricos, a dar todos os sinais exteriores possíveis da sua riqueza.
A Casa do Paço era de facto diferente. Embora de linhas simples, sem ornamentos barrocos, era uma casa com séculos de história, um elemento importante na história dos coutos em Portugal. Um elemento de certo modo importante na história do concelho de Barcelos, para não falar na história da outrora “vila” do Couto de Cambeses.

Crónica publicada no Jornal de Barcelos de 01-02-1996

Sem comentários:

Enviar um comentário