quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Uma Terra, Outra Terra



Texto de Albano Martins publicado na revista Sol XXI em Agosto de 1994:

"Se eu fosse crítico, escreveria um texto para os jornais a dizer: aqui está um livro enxuto, de prosa escorreita como já por aí não se vê e que, no seu tom despretencioso, só pede: "Deixem-me existir assim, de cara lavada, como os ares de Terroso, donde provenho. Deixem-me ser assim natural, isto é, sem outros adornos ou artifícios que não sejam os que a natureza me deu, afeiçoados embora por algumas tintas de poesia que fui colhendo no painel dos dias e se me impuseram, para dar coloração ao rosto. E deixem que a minha fala se cumpra assim, vestida da mesma naturalidade, aquela naturalidade que é a das gentes da minha terra, não contaminada das estranhezas (e das impurezas) que por aí afloram a cada passo na boca (e na pena) de alguns senhores da política, da informação e da literatura. Não estrangeirada pela aceitação sem critério das técnicas narrativas importadas dos modelos transoceânicos e transfronteiriços.
Histórias da emigração (da "diáspora portuguesa", como diz, no final, o "convite ao leitor"), os contos deste livro são também histórias exemplares (de "proveito e exemplo", como as de Trancoso) de situações que por aí abundam desde que os homens (e as mulheres) deste país, de há uns trinta ou quarenta anos para cá, se meteram pelos caminhos da Europa, não à descoberta desta, mas do pão para a boca. Ou da aventura, como essa "menina ausente", a Maria dos Prazeres, que vende o seu corpo pelos bares de Espanha. Ou movidos pelo "desejo de estranhas distâncias", como o malogrado Porfírio, que, "resolvido a vencer", passou das oceanias às américas e acabou, afinal, vencido pela má sorte e pelo álcool.
Algumas destas situações encontram-se já prefiguradas, ou mesmo já anunciadas (diria melhor, denunciadas), nos autos de Gil Vicente: a aventura da India, dos "fumos da India", que, como diz Sá de Miranda, "ao cheiro desta canela / o Reino nos despovoa", já forneceu pano a outras histórias (verdadeiras) da degradação dos costumes e da desagregação das famílias. Um eterno retorno nietzchiano, de cariz social. E, se o pano é o mesmo, porque tecido das mesmas fibras e da mesma carne dos homens, as malhas, essas, não são já as que o império tece(u), mas as das encruzilhadas das europas que nos ficam à porta. As que, cerzidas pela mão de Maria do Pilar Figueiredo, se estendem de Terroso a Vigo, a Paris ou a Frankfurt. As que, enfim, entretecidas dos fios do sonho e da miragem, convocam para o horizonte dum quotidiano de humilhação e de pobreza os novos eldorados do prazer e da abundância.
É desta epopeia ( e dizer epopeia é dizer aventura) que se alimentam os contos de Uma Terra, Outra Terra. Na sobriedade e modéstia do seu discurso (mas a modéstia, se não é falsa, traz impressa a marca da virtude), falam os dramas e aspirações de um povo que, de olhos postos no mar, com os adamastores à vista, sempre buscou na terra (numa terra, noutra terra...) os frutos apetecidos de que se sustentam o corpo e a alma.


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